sexta-feira, 14 de junho de 2013

Um grito de poesia: Rui Caeiro, a dois passos


Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais

soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti

e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu

nunca soube onde colocar e logo vinha o vento

e levava, quando penso em ti e mais em tudo

o que deixaste avariado na minha vida e eram

todos os pobres artefactos dela, da minha vida

quando penso em ti, isto é, quando penso em

nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós

éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno

é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu

penso — esse tempo esse calor esse frio essa espera

insuportável. É no inferno que penso, mas devo

reconhecer, em abono da verdade, que não era

no inferno que nós estávamos, era a dois passos

dele e se queres mesmo saber era agradável

pela boa e simples razão de que não havia mais

nada, era intensa e insuportavelmente agradável

Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que

se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor

que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos

aquecia. Era a dois passos do inferno — estava-se bem.


  do inferno – cinco aproximaçõestelhados de vidro, nr. 12, maio 2009, averno

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