sexta-feira, 5 de março de 2010

Grito 28

Humilhação

Está sentada numa sala de espera de um hospital central. Tapa o ouvido esquerdo com a mão esquerda, cheia de sangue. Presume-se que esteja ferida naquele sítio. Tem uma expressão fechada, distante e cansada. Chamam-na na vez dela, muito tempo depois de ali ter chegado, e perguntam-lhe o que aconteceu. Apenas diz que lhe deram um estalo com força ou mau jeito. É encaminhada para a especialidade de otorrino onde o médico sentencia que o tímpano está furado e que é isso que provoca o sangramento. Ela fica um pouco aliviada. O médico pergunta-lhe quem lhe fez aquilo, ao que responde “ninguém”. Ignorando a resposta dada, o médico pergunta se ela quer apresentar queixa à polícia que está à porta do hospital e que está ali para esses casos. Ela olha o médico nos olhos e responde “não”, firmemente. Depois de algumas recomendações fica livre para ir embora.
Quando sai do hospital não sabe o que fazer, para onde ir, a quem telefonar, a dizer o quê, para quê. Quem lhe bateu não queria furar-lhe o tímpano, acredita ela. Mas queria bater-lhe e bateu-lhe com força sabendo que isso poderia ter consequências. O que a magoa é que lhe tenham batido. Que lhe tenha batido quem lhe bateu, pela razão que lhe bateu e, só por fim, lhe diz alguma coisa a forma como lhe bateu. Ela acha que não tem espírito de vítima e por isso não se vai queixar a ninguém. Mas sabe que este silêncio protege quem bate, o agressor, o que de pior existe na pessoa que lhe bateu. Sabe que essa pessoa é doente, mas só ela sabe isso e este conhecimento solitário continua a ser protector de quem agride e maltrata os outros.
Enquanto anda a pé pela rua e sente aquela dor no ouvido que se espalha pela cabeça, vai pensando no que pode levar uma pessoa a manter contacto com alguém como aquela pessoa que a agrediu. Essa pessoa é o que é, é como é, não mudará. Sobre isso não tem quaisquer dúvidas ou esperanças. E, por isso mesmo, porquê? Será que gosta que lhe batam? Gostará da sua infelicidade? Não é tão invulgar assim: muitas pessoas cultivam a infelicidade como forma de estar na vida. Acarinhará a sua infelicidade porque é a sua certeza, a única certeza e as certezas podem funcionar como segurança? Não tem respostas. Cada pergunta traz outra agarrada. E no entanto, o único lugar onde lhe apetecia estar naquele momento era, precisamente, junto de quem a agrediu. Estaria triste, infeliz, cansada. Mas era lá que queria estar.
Continuou a andar pela cidade, sem rumo, falando consigo própria, evitando dramatizar, branqueando um pouco o acontecimento. Se fizesse este percurso interior durante muito tempo, talvez até chegasse à conclusão de que merecia que lhe tivessem batido. Já não recorda com clareza como é que as coisas se passaram. Sabe que estavam a discutir e quando discutiam tudo podia acontecer. Talvez ela tenha agredido primeiro a outra pessoa, já não se lembra. Mas mesmo que o tenha feito, sabe que não o poderia ter feito de forma a magoá-la, pois não tem força suficiente para o efeito. Claro que no meio de uma discussão, as agressões (verbais ou não) não são simétricas. São o que vem à cabeça. E ela sabia como desesperar qualquer pessoa. Tinha um poder de argumentação demolidor e, os outros, quando já não sabiam o que responder e estavam já exasperados, podiam fazer qualquer coisa, como bater, agredir fisicamente, às vezes mata-se nessas circunstâncias. Ela crê que as pessoas se arrependem do que fazem. Se ela se arrepende de ter discutido, como não hão-de os outros arrepender-se de magoar alguém que supostamente amam?
Continuou a andar, encaminhando-se para onde queria estar. Tocou à campainha e teve muito medo que não lhe abrissem a porta. Não saberia o que fazer se não lhe abrissem aquela porta, porque era ali que queria entrar. Demoraram muito tempo a abrir a porta. Ela fartou-se de tocar e, por fim, lá abriram a porta e ela entrou. A medo. Mas entrou. Trazia na mão o lenço com que tinha tapado o ouvido para evitar que o sangue lhe sujasse a roupa. O lenço estava cheio de sangue seco. Ela aproximou-se da pessoa que lhe tinha batido, pegou-lhe na mão direita, colocou-lhe o lenço dentro dela, fechou-lhe a mão e disse: “desculpa”. E o dia prosseguiu como se nada daquilo tivesse acontecido.

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