sábado, 3 de abril de 2010

Grito 30

Passaste-me

Passas por mim e já nada me dói. Passaste-me. Só me apetece a cama quente de Inverno, a televisão ligada a um canto a fingir que está ali alguém, os jornais do fim-de-semana quase a serem lidos e ninguém por perto para opinar sobre as minhas rotinas. Passaste-me. E esse pensamento ocupa-me. Doeu tanto, chorei, gritei, mordi os lábios para não chorar em lugares públicos, apertei as mãos vazias, achei que morria, ninguém como tu. E olha o que aconteceu: passaste-me completamente; passaste-me ao lado. Que desperdício de tempo e disponibilidade interior: gostar, cumprir rituais, desencontrar, sofrer, deixar de gostar e pensar em tudo isto. E agora eu aqui, deitada na cama sem me apetecer fazer seja o que for que não isto: pensar sobre isto. Sinto-me estranha por me teres passado. É como se tivesse estado muito tempo doente e agora a saúde faz-me mal. Apetece-me este quarto familiar, os meus objectos, o comando da televisão para fazer zapping e encher o quarto de diferentes luminosidades. Quero o habitual para me ajudar a suportar o diferente. Eu era uma ferida aberta e qualquer gesto teu, qualquer movimento, palavra, atitude faziam sangrar e crescer a ferida. Ninguém me podia tocar. Tudo me doía. Até o carinho de outros me fazia mal. Parecia uma coisa do diabo. Mas não era, era mesmo uma coisa muito minha. Uma forma própria de sofrer no limite do tolerável e depois voltar à vida semi-anestesiada. Aprendi isto a correr. Corri sempre muito e sempre acima das minhas forças. No fim de cada corrida, estava pronta para cair para o lado, desmaiar e precisava sempre de algum tempo para me restabelecer. Na vez seguinte fazia o mesmo e nunca deixei de o fazer. Ganhei resistência, aquele fundo dos maratonistas, e isso reflectiu-se no resto da minha vida. Por isso, quando me passaste, quando me deixaste de doer não fiquei muito surpreendida. Apenas vazia daquela dor que me fazia companhia, que me identificava. Quem seria eu sem a tua memória, sem ti? A minha memória de ti estava completamente desactualizada, não te via há anos, mas era uma memória fiel que me recordava do que tínhamos sido capazes. E fomos muito capazes, demasiado. Até que aparece a dor sob a forma de ciúme, raiva, mágoa e eis que dois gigantes lutam na fúria dos sentimentos, à espera, cada um, de ficar com o bocado menor de sofrimento. Tiveste sorte. Ou tive azar. Eu passei-te melhor: quase não sangraste nem adoeceste. Ouvi dizer que te escondeste um pouco para não te verem sofrer. E é justo que assim seja.

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