domingo, 28 de fevereiro de 2010
Um grito em forma de livro: O chão que ela pisa, Salman Rushdie
A história é uma recriação moderna do mito de Orfeu e Eurídice. Decorre em Mumbai, Índia e tem como protagonistas um casal, Vina Apsara e Ormus Cama, e o fotógrafo Rai, o narrador. Amor, morte e rock-and-roll ajudam a compor um envolvente enredo.
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Grito 27
E pronto
E pronto. Eis mais uma história que não aconteceu. Assim foi. Tal como disseste que seria. Uma coisa de nada. Uma pestana no olho. Um encontrão na mesa. Um depósito quase vazio. Nenhum herói, nenhum mártir. Nem lágrimas, nem sorrisos. Talvez uma prega no intestino que me fará morrer. Mas só daqui a muitos anos. Não associarei as coisas. E, contudo, um início tão prometedor, intenso, o desejo a doer nos ossos, a boca seca de fome, uma entrega cega, às escuras. Quase nada. Nada. Depois, outra vida, ou a mesma de outra maneira. Esquece-se depressa. O tempo passa e arrasta com ele os detritos que vamos soltando do encontro com a realidade, parece que é a vida. Carregada de quase nada e quase tudo, o que é rigorosamente o mesmo. E no meio de tantas possibilidades, baralhamos a realidade e vão-se os nomes, os cheiros, os lugares, quem, para o quê, desfocamos a memória e lá se vai tudo num banho de mar.
Então, porque me percorre aquele arrepio fundo que vem da espinha sempre que me parece ouvir o grão da tua voz, mas que nem sequer é a tua, apenas aproximada? Então, porque voltas tão depressa se me viro desprevenida? Então, porque não me sais da cabeça? Tu, uma coisa de nada, uma promessa apenas, uma possibilidade, um quase, um se, um ponto de interrogação. E deste quase nada, ficou-me tudo.
Entretanto, dei, literalmente, a volta ao mundo. Como dizia o poeta “viajar, perder países”, esperando perder outras coisas pelo caminho de volta ao mesmo. E distraí-me nessa roda viva de burocracias, espanto, deleite, decepção, prazer e desconforto que são as viagens. E continuarei a viajar até te perder o rasto, não te saber, talvez não te reconhecer, não estares à minha espera nos meus sonhos, até deixares de ser um quase e passares a ser um nada. Neste trajecto, surgem mais uma pregas por dentro que não associarei à morte. Não o poderia dizer com certeza. E não me lembrarei de ti, nessa altura. Pode ser que recorde de forma confusa tantos quases, ses, pontos de interrogação e tenha pena de não ter tido uma vida por cada uma dessas possibilidades. Não saberia escolher, mesmo que pudesse.
Então, porque me percorre aquele arrepio fundo que vem da espinha sempre que me parece ouvir o grão da tua voz, mas que nem sequer é a tua, apenas aproximada? Então, porque voltas tão depressa se me viro desprevenida? Então, porque não me sais da cabeça? Tu, uma coisa de nada, uma promessa apenas, uma possibilidade, um quase, um se, um ponto de interrogação. E deste quase nada, ficou-me tudo.
E pronto. Eis mais uma história que não aconteceu. Assim foi. Tal como disseste que seria. Uma coisa de nada. Uma pestana no olho. Um encontrão na mesa. Um depósito quase vazio. Nenhum herói, nenhum mártir. Nem lágrimas, nem sorrisos. Talvez uma prega no intestino que me fará morrer. Mas só daqui a muitos anos. Não associarei as coisas. E, contudo, um início tão prometedor, intenso, o desejo a doer nos ossos, a boca seca de fome, uma entrega cega, às escuras. Quase nada. Nada. Depois, outra vida, ou a mesma de outra maneira. Esquece-se depressa. O tempo passa e arrasta com ele os detritos que vamos soltando do encontro com a realidade, parece que é a vida. Carregada de quase nada e quase tudo, o que é rigorosamente o mesmo. E no meio de tantas possibilidades, baralhamos a realidade e vão-se os nomes, os cheiros, os lugares, quem, para o quê, desfocamos a memória e lá se vai tudo num banho de mar.
Então, porque me percorre aquele arrepio fundo que vem da espinha sempre que me parece ouvir o grão da tua voz, mas que nem sequer é a tua, apenas aproximada? Então, porque voltas tão depressa se me viro desprevenida? Então, porque não me sais da cabeça? Tu, uma coisa de nada, uma promessa apenas, uma possibilidade, um quase, um se, um ponto de interrogação. E deste quase nada, ficou-me tudo.
Entretanto, dei, literalmente, a volta ao mundo. Como dizia o poeta “viajar, perder países”, esperando perder outras coisas pelo caminho de volta ao mesmo. E distraí-me nessa roda viva de burocracias, espanto, deleite, decepção, prazer e desconforto que são as viagens. E continuarei a viajar até te perder o rasto, não te saber, talvez não te reconhecer, não estares à minha espera nos meus sonhos, até deixares de ser um quase e passares a ser um nada. Neste trajecto, surgem mais uma pregas por dentro que não associarei à morte. Não o poderia dizer com certeza. E não me lembrarei de ti, nessa altura. Pode ser que recorde de forma confusa tantos quases, ses, pontos de interrogação e tenha pena de não ter tido uma vida por cada uma dessas possibilidades. Não saberia escolher, mesmo que pudesse.
Então, porque me percorre aquele arrepio fundo que vem da espinha sempre que me parece ouvir o grão da tua voz, mas que nem sequer é a tua, apenas aproximada? Então, porque voltas tão depressa se me viro desprevenida? Então, porque não me sais da cabeça? Tu, uma coisa de nada, uma promessa apenas, uma possibilidade, um quase, um se, um ponto de interrogação. E deste quase nada, ficou-me tudo.
domingo, 21 de fevereiro de 2010
Um grito em forma de livro: Bela do Senhor, Albert Cohen
Um grito na vida: Tom Ford
It's November 30, 1962. Native Brit George Falconer, an English professor at a Los Angeles area college, is finding it difficult to cope with life. Jim, his personal partner of sixteen years, died in a car accident eight months earlier when he was visiting with family. Jim's family were not going to tell George of the death or accident let alone allow him to attend the funeral. This day, George has decided to get his affairs in order before he will commit suicide that evening. As he routinely and fastidiously prepares for the suicide and post suicide, George reminisces about his life with Jim. But George spends this day with various people, who see a man sadder than usual and who affect his own thoughts about what he is going to do. Those people include Carlos, a Spanish immigrant/aspiring actor/gigolo recently arrived in Los Angeles; Charley, his best friend who he knew from England, she who is a drama queen of a woman who romantically desires her best friend despite his sexual orientation; and Kenny Potter, one of his students, who seems to be curious about his professor beyond English class.
Grito 26
Doente
Comprei uma casa para fugir do teu amor. Que me matava, sufocava e, sobretudo, me afastava de tudo o que queria fazer. Comprei uma casa, muito pior do que a nossa que foi sempre só tua, para me isolar de ti. Não se trata apenas de amar o homem que não quero para mim. É muito pior do que isso – é amar quem me destrói e desejar isso. Sei que o mundo está cheio de mulheres “que amam demais” os homens errados para elas, que pensam não conseguir viver sem eles, autênticas heroínas modernas que se distinguem das clássicas apenas porque podem fugir, partir, ir embora, morrer… e não querem, nem vão.
Posso resumir a nossa vida a uma repetição exaustiva de estados iguais: o desejo físico intenso; o amor incondicional; o desencontro nas rotinas; a tensão latente; a tensão explícita; a agressão; a ruptura; o vazio; as saudades; o reencontro; e de novo o desejo físico intenso; etc. O tempo que mediava entre o primeiro estado e o último variava entre um dia e um mês e eu estava sempre numa situação de ruptura emocional motivada pela instabilidade a que me sujeitava.
Tu eras mais básico e estável e, por isso, apenas te dividias entre coisas boas e más: a minha pessoa ora era fonte de prazer e era uma coisa boa, ora era fonte de ódio e era uma coisa má. Odiavas-me com mais intensidade e durante mais tempo do que o que me amavas. Tive que aprender a amar-te mesmo quando me odiavas e tratavas mal simplesmente porque não era capaz de odiar ninguém durante tanto tempo e sentia muito a tua falta.
Sentir a falta de alguém é seguramente a maior escravidão. Nunca mais nada está no sítio. Todos os lugares parecem desertos apenas porque tu não estás lá. Todas as pessoas carecem de interesse e quase suspiramos pelo que nos levou a fugir. Ficamos confusos e doentes. O resto da vida depende do quanto doente ficamos e de como saímos dessa doença ou quanto tempo nos deixamos embalar por ela.
Sofrer não é a pior coisa do mundo. Não pode ser a pior coisa do mundo. Demoramos tanto tempo a desistir de sofrer que, hoje, acredito que temos que ter ganhos com o sofrimento. Da última vez que fugi de ti, até hoje, quis, até ao último minuto, que não me deixasses ir embora, que me pedisses para ficar, que me pedisses desculpa, que acontecesse qualquer coisa que me permitisse ficar com alguma dignidade. Mas, do teu lado, não veio um único sinal e eu tive que ser coerente, pelo menos uma vez na nossa curta vida.
Estive (estou ainda?) viciada em ti, dependente até ao tutano. Respirava por ti, acordava para te ver, passava o dia a pensar no momento de estar contigo, pensava em ti constantemente, sentia que tinha que te aproveitar porque um dia tudo acabaria, arranjava-me como sabia que gostavas, comprava-te prendas para te alegrar… e nunca me chegavas. Se estava contigo vinte e quatro horas queria o dobro. Se passava um mês contigo, sentia que só um ano me faria feliz e foi assim que cheguei à eternidade: nunca me bastarias. Por mais que te tivesse sabia que nunca te teria completamente. Não seríamos o tipo de casal que engorda na sua felicidade calma.
Quando entrei pela primeira vez na casa que comprei para fugir de ti ela pareceu-me pequena, sem luz, sem vistas bonitas. Pareceu-me de facto o ideal para fugir: anular-me lá dentro, dormir dias sem fim, alimentar-me só o suficiente para não morrer, não estar com ninguém, não limpar nem arrumar a casa, não atender o telefone nem abrir a porta, deixar-me ir. Sofrer como um cão abandonado num sítio desconhecido.
Hoje, já um pouco longe de tudo isso, a casa parece-me um pouco maior, ainda não consigo perder-me dentro dela, mas já abri as cortinas e deixei entrar alguma luz. Despejei o saco do lixo e comprei uma televisão. Há dias dei comigo a raspar as portas (castanhas) para as pintar de branco. Colei algumas fotografias de amigos nas paredes e liguei o fogão. Não é ainda um lar, mas já a sinto como um refúgio, um lugar que me abraça nas noites em que a memória que de ti tenho me assalta e se apodera de mim.
Comprei uma casa para fugir do teu amor. Que me matava, sufocava e, sobretudo, me afastava de tudo o que queria fazer. Comprei uma casa, muito pior do que a nossa que foi sempre só tua, para me isolar de ti. Não se trata apenas de amar o homem que não quero para mim. É muito pior do que isso – é amar quem me destrói e desejar isso. Sei que o mundo está cheio de mulheres “que amam demais” os homens errados para elas, que pensam não conseguir viver sem eles, autênticas heroínas modernas que se distinguem das clássicas apenas porque podem fugir, partir, ir embora, morrer… e não querem, nem vão.
Posso resumir a nossa vida a uma repetição exaustiva de estados iguais: o desejo físico intenso; o amor incondicional; o desencontro nas rotinas; a tensão latente; a tensão explícita; a agressão; a ruptura; o vazio; as saudades; o reencontro; e de novo o desejo físico intenso; etc. O tempo que mediava entre o primeiro estado e o último variava entre um dia e um mês e eu estava sempre numa situação de ruptura emocional motivada pela instabilidade a que me sujeitava.
Tu eras mais básico e estável e, por isso, apenas te dividias entre coisas boas e más: a minha pessoa ora era fonte de prazer e era uma coisa boa, ora era fonte de ódio e era uma coisa má. Odiavas-me com mais intensidade e durante mais tempo do que o que me amavas. Tive que aprender a amar-te mesmo quando me odiavas e tratavas mal simplesmente porque não era capaz de odiar ninguém durante tanto tempo e sentia muito a tua falta.
Sentir a falta de alguém é seguramente a maior escravidão. Nunca mais nada está no sítio. Todos os lugares parecem desertos apenas porque tu não estás lá. Todas as pessoas carecem de interesse e quase suspiramos pelo que nos levou a fugir. Ficamos confusos e doentes. O resto da vida depende do quanto doente ficamos e de como saímos dessa doença ou quanto tempo nos deixamos embalar por ela.
Sofrer não é a pior coisa do mundo. Não pode ser a pior coisa do mundo. Demoramos tanto tempo a desistir de sofrer que, hoje, acredito que temos que ter ganhos com o sofrimento. Da última vez que fugi de ti, até hoje, quis, até ao último minuto, que não me deixasses ir embora, que me pedisses para ficar, que me pedisses desculpa, que acontecesse qualquer coisa que me permitisse ficar com alguma dignidade. Mas, do teu lado, não veio um único sinal e eu tive que ser coerente, pelo menos uma vez na nossa curta vida.
Estive (estou ainda?) viciada em ti, dependente até ao tutano. Respirava por ti, acordava para te ver, passava o dia a pensar no momento de estar contigo, pensava em ti constantemente, sentia que tinha que te aproveitar porque um dia tudo acabaria, arranjava-me como sabia que gostavas, comprava-te prendas para te alegrar… e nunca me chegavas. Se estava contigo vinte e quatro horas queria o dobro. Se passava um mês contigo, sentia que só um ano me faria feliz e foi assim que cheguei à eternidade: nunca me bastarias. Por mais que te tivesse sabia que nunca te teria completamente. Não seríamos o tipo de casal que engorda na sua felicidade calma.
Quando entrei pela primeira vez na casa que comprei para fugir de ti ela pareceu-me pequena, sem luz, sem vistas bonitas. Pareceu-me de facto o ideal para fugir: anular-me lá dentro, dormir dias sem fim, alimentar-me só o suficiente para não morrer, não estar com ninguém, não limpar nem arrumar a casa, não atender o telefone nem abrir a porta, deixar-me ir. Sofrer como um cão abandonado num sítio desconhecido.
Hoje, já um pouco longe de tudo isso, a casa parece-me um pouco maior, ainda não consigo perder-me dentro dela, mas já abri as cortinas e deixei entrar alguma luz. Despejei o saco do lixo e comprei uma televisão. Há dias dei comigo a raspar as portas (castanhas) para as pintar de branco. Colei algumas fotografias de amigos nas paredes e liguei o fogão. Não é ainda um lar, mas já a sinto como um refúgio, um lugar que me abraça nas noites em que a memória que de ti tenho me assalta e se apodera de mim.
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
Grito 25
Desencontro
Um telefone toca. Toca, toca uma vez e outra. Mas não há ninguém que o atenda e este é o epíteto do que poderia ter sido uma comovente história de amor. Ninguém atendeu o telefone e esse telefonema inaugurava uma vida nova. Se, por acaso, tivesse atendido o telefone, nesse momento, ter-me-ias notificado do teu amor, ao qual sucumbiria, não sei se por conveniência da idade, se por solidão ou se apenas por te poder notificar do mesmo, na volta. Teria subtraído da minha vida outras pessoas, outros acontecimentos, outros festejos e lamentos. Mas eu não atendi o telefone, simplesmente. Não disse “está lá?” com voz interrogativa ao que responderias “olá!” reconhecendo de imediato a minha voz. E o grão da tua voz poderia ter percorrido a minha coluna vertebral e isso ser a luz que iluminaria o rumo da conversa. Mas não. Porque telefonaste na minha ausência? Porque falhei o teu telefonema? Em que momento dissemos adeus sem o sabermos? Em que altura roçamos os nossos destinos sem que eles se cruzassem? Pode ter sido um semáforo, a chuva, uma conversa mais demorada, um cigarro a mais, uma compra de última hora, um filme imperdível, um casaco entregue na lavandaria, uma música mais alta, outra pessoa, o porteiro, o correio, um mundo inteiro de ocasiões para sacrificar o teu telefonema. Terei ouvido o telefone tocar e decidido não atender? Não sabia que eras tu. Apenas não me senti motivada para atender o telefonema. Ou quem sabe, quando decidi atendê-lo, do outro lado já o tinham desligado. Um fragmento de tempo atraiçoou-nos, condenou-nos à perda um do outro. Ter-me-ias prometido a lua? E eu que andava tanto a precisar que me prometessem a lua e arredores. A precisar de um pouco de sonho e cor para levar a bom porto as minhas tarefas, cada vez mais pesadas. Ter-me-ias mentido? Juras de fidelidade e amizade para sempre? Se soubesses o quando eu precisava dessas doces mentiras para amaciar o meu dia a dia, terias tentado telefonar de novo. Invento o teu telefonema como o que de melhor me poderia ter acontecido. Não o ter atendido, como o grande desencontro da minha vida. Por esta altura, eu estava disposta a amar, a acreditar, a fechar os olhos e sonhar. Até a procriar… quem sabe. Mas eu não atendi o telefone e, no dia seguinte, a rotina sobrepôs-se a tudo e tu deixaste de telefonar, aparecer e eu fui vivendo ignorando que te tinha falhado, escapado. As nossas vidas afastaram-se de uma forma tão natural, que ninguém, nem nós suporíamos o que teríamos sido juntos, o quanto ficámos aquém do que fomos, um sem o outro.
Anos e anos depois do telefonema que não chegou a acontecer, encontramo-nos tão ocasionalmente quanto nos tínhamos desencontrado anos atrás. Parecemos reconhecer um no outro aquilo que não tínhamos sido e deixamos que o silêncio se apoderasse do nosso olhar e foi tão triste quanto um natal sem prendas para quem as espera. Anoiteceu no nosso encontro fora do tempo e continuamos a olhar-nos, silenciosos, perdidos e achados, mas sem vida para dar ao outro, sem espaço, sem dor. A noite veio encobrir as nossas rugas, as nossas lágrimas, as nossas não-palavras, o nosso passado, o nosso futuro. Teríamos sido um e soubemo-lo naquele momento. Agora éramos um dividido ao meio. Anoiteceu no nosso encontro para esconder a crueldade que foi encontrarmo-nos tanto tempo fora do tempo. Se tivesse sabido que não podia faltar àquela chamada que foi o teu telefonema teria rasgado qualquer cenário, teria morrido por isso. O que será a nossa vida depois do encontro-pós-desencontro? Um areal de “ses” e “comos” irrespondíveis, uma angústia velha e enrugada como os nossos rostos, onde lemos a vida um do outro sem termos sentido a necessidade de falar. Para quê as palavras, agora? Tão tarde, tão escuro, tão sem sentido, tão velhos, tão desistentes, tão prontos para outra morte, tão descrentes em finais felizes. Foi difícil descolarmos o olhar um do outro, éramos o espelho um do outro. E eis que o ciclo do tempo se precipita e ora é de dia, ora é de noite, tão velozmente que desperto em casa. E tu foste aquele que telefonou sem que eu lhe tivesse atendido o telefone.
Um telefone toca. Toca, toca uma vez e outra. Mas não há ninguém que o atenda e este é o epíteto do que poderia ter sido uma comovente história de amor. Ninguém atendeu o telefone e esse telefonema inaugurava uma vida nova. Se, por acaso, tivesse atendido o telefone, nesse momento, ter-me-ias notificado do teu amor, ao qual sucumbiria, não sei se por conveniência da idade, se por solidão ou se apenas por te poder notificar do mesmo, na volta. Teria subtraído da minha vida outras pessoas, outros acontecimentos, outros festejos e lamentos. Mas eu não atendi o telefone, simplesmente. Não disse “está lá?” com voz interrogativa ao que responderias “olá!” reconhecendo de imediato a minha voz. E o grão da tua voz poderia ter percorrido a minha coluna vertebral e isso ser a luz que iluminaria o rumo da conversa. Mas não. Porque telefonaste na minha ausência? Porque falhei o teu telefonema? Em que momento dissemos adeus sem o sabermos? Em que altura roçamos os nossos destinos sem que eles se cruzassem? Pode ter sido um semáforo, a chuva, uma conversa mais demorada, um cigarro a mais, uma compra de última hora, um filme imperdível, um casaco entregue na lavandaria, uma música mais alta, outra pessoa, o porteiro, o correio, um mundo inteiro de ocasiões para sacrificar o teu telefonema. Terei ouvido o telefone tocar e decidido não atender? Não sabia que eras tu. Apenas não me senti motivada para atender o telefonema. Ou quem sabe, quando decidi atendê-lo, do outro lado já o tinham desligado. Um fragmento de tempo atraiçoou-nos, condenou-nos à perda um do outro. Ter-me-ias prometido a lua? E eu que andava tanto a precisar que me prometessem a lua e arredores. A precisar de um pouco de sonho e cor para levar a bom porto as minhas tarefas, cada vez mais pesadas. Ter-me-ias mentido? Juras de fidelidade e amizade para sempre? Se soubesses o quando eu precisava dessas doces mentiras para amaciar o meu dia a dia, terias tentado telefonar de novo. Invento o teu telefonema como o que de melhor me poderia ter acontecido. Não o ter atendido, como o grande desencontro da minha vida. Por esta altura, eu estava disposta a amar, a acreditar, a fechar os olhos e sonhar. Até a procriar… quem sabe. Mas eu não atendi o telefone e, no dia seguinte, a rotina sobrepôs-se a tudo e tu deixaste de telefonar, aparecer e eu fui vivendo ignorando que te tinha falhado, escapado. As nossas vidas afastaram-se de uma forma tão natural, que ninguém, nem nós suporíamos o que teríamos sido juntos, o quanto ficámos aquém do que fomos, um sem o outro.
Anos e anos depois do telefonema que não chegou a acontecer, encontramo-nos tão ocasionalmente quanto nos tínhamos desencontrado anos atrás. Parecemos reconhecer um no outro aquilo que não tínhamos sido e deixamos que o silêncio se apoderasse do nosso olhar e foi tão triste quanto um natal sem prendas para quem as espera. Anoiteceu no nosso encontro fora do tempo e continuamos a olhar-nos, silenciosos, perdidos e achados, mas sem vida para dar ao outro, sem espaço, sem dor. A noite veio encobrir as nossas rugas, as nossas lágrimas, as nossas não-palavras, o nosso passado, o nosso futuro. Teríamos sido um e soubemo-lo naquele momento. Agora éramos um dividido ao meio. Anoiteceu no nosso encontro para esconder a crueldade que foi encontrarmo-nos tanto tempo fora do tempo. Se tivesse sabido que não podia faltar àquela chamada que foi o teu telefonema teria rasgado qualquer cenário, teria morrido por isso. O que será a nossa vida depois do encontro-pós-desencontro? Um areal de “ses” e “comos” irrespondíveis, uma angústia velha e enrugada como os nossos rostos, onde lemos a vida um do outro sem termos sentido a necessidade de falar. Para quê as palavras, agora? Tão tarde, tão escuro, tão sem sentido, tão velhos, tão desistentes, tão prontos para outra morte, tão descrentes em finais felizes. Foi difícil descolarmos o olhar um do outro, éramos o espelho um do outro. E eis que o ciclo do tempo se precipita e ora é de dia, ora é de noite, tão velozmente que desperto em casa. E tu foste aquele que telefonou sem que eu lhe tivesse atendido o telefone.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Grito 24
Os bonecos de peluche e os desenhos animados aquecem-me neste frio. Rio-me desalmadamente com eles. Nunca crescerei? Se m'os tirarem, não. Não crescerei sem riso, sem ternura.
domingo, 14 de fevereiro de 2010
Um grito na vida: Kubrick
Humbert, a divorced British professor of French literature, travels to small-town America for a teaching position. He allows himself to be swept into a relationship with Charlotte Haze, his widowed and sexually famished landlady, whom he marries in order that he might pursue the woman's 14-year-old flirtatious daughter, Lolita, with whom he has fallen hopelessly in love, but whose affections shall be thwarted by a devious trickster named Clare Quilty.
Grito 23
Deixar de amar
É verdade, deixei de te amar. Consegui deixar de te amar. Tanto tempo a lutar comigo! Ainda há dias estava conformada com o facto de viver para sempre com este sobressalto dentro de mim: se te visse, se passasse pelos teus lugares, se vislumbrasse o teu carro, se encontrasse os teus amigos ou familiares, se me aproximasse de algo que estivesse relacionado contigo ou, por vezes, se me limitasse a pensar em ti de forma mais profunda, o meu coração fazia “baque”, isso mesmo, “baque” e começava a bater de forma descompassada, obrigando-me a respirar fundo e devagar durante alguns minutos até recuperar a calma. Ainda há muito pouco tempo confessava às paredes que te amaria para sempre mas nunca o admitiria a ninguém, imagina o romantismo.
E tudo se passou de forma tão estranha! Vi-te sem contar ver-te, num lugar muito improvável onde nunca imaginaria encontrar-te, vestido de uma forma estranha para mim, numa postura ensaiada e igual à das outras pessoas que te rodeavam e eis que de repente te acho parecido com o teu irmão. Sim, com o teu irmão! Logo o teu irmão, que nunca seria capaz de amar. Olhei para ti diversas vezes antes de tu me veres a olhar para ti, à espera de te reconhecer deveras, mas essa sensação não chegou e eu senti “baque”, sim, mas um “baque” por motivos diferentes dos habituais. Um “baque” que assinalava a minha liberdade, o fim da minha doença, da minha tortura, do meu segredo. Senti-me sem chão, sem tecto, sem objecto de amor, senti-me perdida no meu desamor, sem caminho. Mas livre, racional, mulher. Apercebi-me do quanto o amor me faz regredir, me infantiliza, me torna dependente, me anula e um sentimento de tristeza apoderou-se de mim.
Aproximei-me de ti, cumprimentei-te, foste cordial, simpático, bonito, mas já não eras tu ali: nem naquele lugar nem dentro de mim. Olhei-te com simpatia, imagina! Acho que nunca te tinha olhado assim e ficaste espantado. Perguntaste-me se se passava alguma coisa; respondi-te que sim, mas que não havia necessidade de se falar sobre isso naquele momento. Estranhaste-me tanto que cheguei a sentir pena. Quem serias tu sem o meu amor? Tinha-te engrandecido tanto; tinhas crescido tanto apoiado nele; tinhas ido tão longe e agora eu reparava que era quase da tua altura e que as tuas mãos eram pequenas, em suma, tinhas defeitos. Doeu-me tornar-te homem, retirar-te a aura com a qual te coroara e nomeara homem da minha vida. Doeu-me devolver-te um sorriso neutro, sem nostalgia, sem dor, sem saudades.
Despedi-me de ti e resolvi ir embora daquele lugar que era o cemitério do meu amor por ti. O lugar onde me libertara de ti. O lugar onde te abandonava. De repente, senti a tua mão no meu ombro e a palavra “espera” soou nos meus ouvidos sem nenhuma emoção. Voltei-me para ti, compreendi a tua orfandade e não fui capaz de te mentir. Não fui capaz de dizer nada. Estava realmente vazia de ti e, ainda, de mim. Pegaste num cabelo caído na gola do meu casaco, enrolaste-o nos dedos e compreendi que tentavas prender-me, chamar-me de volta, ainda que não me amasses já há muito tempo, apenas tinhas boas recordações o que já não é nada mau nos tempos que correm.
Olhei para o relógio e esse foi o último gesto que partilhamos. Deixaste-me ir finalmente. É natural que tenhas ficado a olhar para mim enquanto me afastava porque sabias que o caminho que eu percorria naquele instante era o caminho que me levava definitivamente para longe de ti. Talvez tenhas dito o meu nome baixinho, em jeito de despedida, como poderias ter dito adeus. Talvez me tenhas amado de novo naquele momento. Talvez te tenhas ido embora, apenas. Talvez tenhas acreditado que era tudo tão injusto.
É verdade, deixei de te amar. Consegui deixar de te amar. Tanto tempo a lutar comigo! Ainda há dias estava conformada com o facto de viver para sempre com este sobressalto dentro de mim: se te visse, se passasse pelos teus lugares, se vislumbrasse o teu carro, se encontrasse os teus amigos ou familiares, se me aproximasse de algo que estivesse relacionado contigo ou, por vezes, se me limitasse a pensar em ti de forma mais profunda, o meu coração fazia “baque”, isso mesmo, “baque” e começava a bater de forma descompassada, obrigando-me a respirar fundo e devagar durante alguns minutos até recuperar a calma. Ainda há muito pouco tempo confessava às paredes que te amaria para sempre mas nunca o admitiria a ninguém, imagina o romantismo.
E tudo se passou de forma tão estranha! Vi-te sem contar ver-te, num lugar muito improvável onde nunca imaginaria encontrar-te, vestido de uma forma estranha para mim, numa postura ensaiada e igual à das outras pessoas que te rodeavam e eis que de repente te acho parecido com o teu irmão. Sim, com o teu irmão! Logo o teu irmão, que nunca seria capaz de amar. Olhei para ti diversas vezes antes de tu me veres a olhar para ti, à espera de te reconhecer deveras, mas essa sensação não chegou e eu senti “baque”, sim, mas um “baque” por motivos diferentes dos habituais. Um “baque” que assinalava a minha liberdade, o fim da minha doença, da minha tortura, do meu segredo. Senti-me sem chão, sem tecto, sem objecto de amor, senti-me perdida no meu desamor, sem caminho. Mas livre, racional, mulher. Apercebi-me do quanto o amor me faz regredir, me infantiliza, me torna dependente, me anula e um sentimento de tristeza apoderou-se de mim.
Aproximei-me de ti, cumprimentei-te, foste cordial, simpático, bonito, mas já não eras tu ali: nem naquele lugar nem dentro de mim. Olhei-te com simpatia, imagina! Acho que nunca te tinha olhado assim e ficaste espantado. Perguntaste-me se se passava alguma coisa; respondi-te que sim, mas que não havia necessidade de se falar sobre isso naquele momento. Estranhaste-me tanto que cheguei a sentir pena. Quem serias tu sem o meu amor? Tinha-te engrandecido tanto; tinhas crescido tanto apoiado nele; tinhas ido tão longe e agora eu reparava que era quase da tua altura e que as tuas mãos eram pequenas, em suma, tinhas defeitos. Doeu-me tornar-te homem, retirar-te a aura com a qual te coroara e nomeara homem da minha vida. Doeu-me devolver-te um sorriso neutro, sem nostalgia, sem dor, sem saudades.
Despedi-me de ti e resolvi ir embora daquele lugar que era o cemitério do meu amor por ti. O lugar onde me libertara de ti. O lugar onde te abandonava. De repente, senti a tua mão no meu ombro e a palavra “espera” soou nos meus ouvidos sem nenhuma emoção. Voltei-me para ti, compreendi a tua orfandade e não fui capaz de te mentir. Não fui capaz de dizer nada. Estava realmente vazia de ti e, ainda, de mim. Pegaste num cabelo caído na gola do meu casaco, enrolaste-o nos dedos e compreendi que tentavas prender-me, chamar-me de volta, ainda que não me amasses já há muito tempo, apenas tinhas boas recordações o que já não é nada mau nos tempos que correm.
Olhei para o relógio e esse foi o último gesto que partilhamos. Deixaste-me ir finalmente. É natural que tenhas ficado a olhar para mim enquanto me afastava porque sabias que o caminho que eu percorria naquele instante era o caminho que me levava definitivamente para longe de ti. Talvez tenhas dito o meu nome baixinho, em jeito de despedida, como poderias ter dito adeus. Talvez me tenhas amado de novo naquele momento. Talvez te tenhas ido embora, apenas. Talvez tenhas acreditado que era tudo tão injusto.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
Um grito na vida: Solondz
When a young woman rejects her current overweight suitor in a restaurant, he unexpectedly places a curse on her. The film then moves on to her sisters. One is a happily married woman with a psychiatrist husband and three kids. Unfortunately the husband develops an unnatural fascination for his 11 year old son's male classmates, fantasizes about mass killing in a park, and masturbates to teen magazines. One of his patients has an unrequited fascination for the third sister. Meanwhile the apparently stable 40 year marriage of the sister's parents suddenly unravels when he decides he has had enough and wants to live a hermit's life in Florida. Obviously, the whole movie is slightly warped in its viewpoint and certainly presents abnormal relationships among all of its parties.
Grito 22
Culpa
Acordo de manhã e sinto-me livre, solta, sem obrigações, estou por minha conta hoje, tenho um dia inteiro só para mim, fazer o que me apetece, obedecer aos impulsos. Sinto-me sempre bem quando tenho um dia assim. Salto da cama, alimento-me e volto para a cama. Adormeço e acordo de forma intermitente mas sem angústia. Escolho um filme, coloco-o na aparelhagem adequada e vejo-o com olhos de comer. No fim, revejo certas passagens que considero fabulosas. Pego no meu bloco de cabeceira e rabisco algumas considerações sobre o filme e a direcção de actores. Volto a dormir um pouco e acordo com fome. Depois do banho resolvo ir almoçar fora, comer algo que eu goste muito. Vou ao centro comercial mais próximo de casa e depois do almoço compro um livro para ler durante a tarde. Tenho o telefone desligado e sabe-me bem saber que ninguém me incomodará durante o resto do dia. Não sei quando começou a impor-se em mim esta vontade de estar só, mas cada vez é mais premente e importante. Regresso a casa e a sua quietude é tudo o que desejo. Encosto-me no sofá e começo a ler avidamente. Interiormente começo a fazer a contagem decrescente para o fim deste sossego que tanto preciso e desejo, mas resolvo aproveitar e não pensar em ponteiros. Fico agarrada à leitura até anoitecer e termina o descanso. Inicio então a tarefa de apagar os vestígios deixados do meu dia de folga, ninguém percebe esta vontade de estar só e fazer coisas simples e evitar os outros. Faço a cama, arrumo coisas, limpo outras e os outros começam a entrar em casa. Respiro fundo. É certo que são pessoas que amo, do meu sangue, mas basta-me saber que estão bem para me sentir bem, não preciso de as ter perto de mim. Chegam cheios de acontecimentos para relatar e ouço-os com o distanciamento de quem não esteve lá porque não quis. Prepara-se uma refeição para todos e todos parecem tantos. Tantos “eus” com as suas singularidades a precisarem de uma atenção específica, de uma palavra adequada, de um pouco do meu “eu”. A noite cai e é o regresso barulhento aos quartos, com inúmeros recados para o dia seguinte. E depois, finalmente, o silêncio. E é nestes momentos, em que regresso a mim, que a culpa volta a reaparecer. Insinuando-se, primeiro, e depois instalando-se. E a tua imagem de dor, sofrimento, desespero a cravar-se nos meus olhos cerrados e a única palavra que me ocorre é “perdão”. Perdão por ter deserotizado a tua pessoa e digo isto porque não posso dizer que deixei de te amar. Amo-te de forma fraternal, como sempre amei, mesmo quando te desejava. Mas um dia o desejo desapareceu e não consegui fingir durante muito tempo. Eras um optimista, acreditavas que era uma fase passageira, mas estavas enganado e eu desenganei-te rapidamente. Apaixonei-me por outra pessoa e, como romântica empedernida que era, acreditava que o amor mudava o mundo e, por isso, eu teria que mudar de vida. Deixei-te. Mas nunca me separei afectivamente de ti: a tua dor é a minha dor, o teu desespero é o meu desespero, o teu bem-estar é o meu bem-estar. Adquiriste o estatuto de um pai doente, o único que tive e que não posso abandonar. Mas que abandonei e essa constatação despedaça-me por dentro e por fora. Sou uma sombra do que fui ou do que poderia ser. A culpa corrói-nos e destrói a esperança. Sentimos a culpa como um destino e arranjamos desculpa para ela: não podia viver com um pai, não podia coabitar com alguém que tinha deixado de desejar, não podia partilhar a intimidade de uma casa com um amigo. Durante algum tempo, estas desculpas atenuaram a culpa, mas aos poucos foram perdendo força e o que ficou foi esta dor permanente, este remorso, este mal-estar, esta perda, este sentimento de ter sido capaz de te magoar e deixar tão desamparado. Nunca me perdoarei e este não-perdão é uma culpa definitiva.
Acordo de manhã e sinto-me livre, solta, sem obrigações, estou por minha conta hoje, tenho um dia inteiro só para mim, fazer o que me apetece, obedecer aos impulsos. Sinto-me sempre bem quando tenho um dia assim. Salto da cama, alimento-me e volto para a cama. Adormeço e acordo de forma intermitente mas sem angústia. Escolho um filme, coloco-o na aparelhagem adequada e vejo-o com olhos de comer. No fim, revejo certas passagens que considero fabulosas. Pego no meu bloco de cabeceira e rabisco algumas considerações sobre o filme e a direcção de actores. Volto a dormir um pouco e acordo com fome. Depois do banho resolvo ir almoçar fora, comer algo que eu goste muito. Vou ao centro comercial mais próximo de casa e depois do almoço compro um livro para ler durante a tarde. Tenho o telefone desligado e sabe-me bem saber que ninguém me incomodará durante o resto do dia. Não sei quando começou a impor-se em mim esta vontade de estar só, mas cada vez é mais premente e importante. Regresso a casa e a sua quietude é tudo o que desejo. Encosto-me no sofá e começo a ler avidamente. Interiormente começo a fazer a contagem decrescente para o fim deste sossego que tanto preciso e desejo, mas resolvo aproveitar e não pensar em ponteiros. Fico agarrada à leitura até anoitecer e termina o descanso. Inicio então a tarefa de apagar os vestígios deixados do meu dia de folga, ninguém percebe esta vontade de estar só e fazer coisas simples e evitar os outros. Faço a cama, arrumo coisas, limpo outras e os outros começam a entrar em casa. Respiro fundo. É certo que são pessoas que amo, do meu sangue, mas basta-me saber que estão bem para me sentir bem, não preciso de as ter perto de mim. Chegam cheios de acontecimentos para relatar e ouço-os com o distanciamento de quem não esteve lá porque não quis. Prepara-se uma refeição para todos e todos parecem tantos. Tantos “eus” com as suas singularidades a precisarem de uma atenção específica, de uma palavra adequada, de um pouco do meu “eu”. A noite cai e é o regresso barulhento aos quartos, com inúmeros recados para o dia seguinte. E depois, finalmente, o silêncio. E é nestes momentos, em que regresso a mim, que a culpa volta a reaparecer. Insinuando-se, primeiro, e depois instalando-se. E a tua imagem de dor, sofrimento, desespero a cravar-se nos meus olhos cerrados e a única palavra que me ocorre é “perdão”. Perdão por ter deserotizado a tua pessoa e digo isto porque não posso dizer que deixei de te amar. Amo-te de forma fraternal, como sempre amei, mesmo quando te desejava. Mas um dia o desejo desapareceu e não consegui fingir durante muito tempo. Eras um optimista, acreditavas que era uma fase passageira, mas estavas enganado e eu desenganei-te rapidamente. Apaixonei-me por outra pessoa e, como romântica empedernida que era, acreditava que o amor mudava o mundo e, por isso, eu teria que mudar de vida. Deixei-te. Mas nunca me separei afectivamente de ti: a tua dor é a minha dor, o teu desespero é o meu desespero, o teu bem-estar é o meu bem-estar. Adquiriste o estatuto de um pai doente, o único que tive e que não posso abandonar. Mas que abandonei e essa constatação despedaça-me por dentro e por fora. Sou uma sombra do que fui ou do que poderia ser. A culpa corrói-nos e destrói a esperança. Sentimos a culpa como um destino e arranjamos desculpa para ela: não podia viver com um pai, não podia coabitar com alguém que tinha deixado de desejar, não podia partilhar a intimidade de uma casa com um amigo. Durante algum tempo, estas desculpas atenuaram a culpa, mas aos poucos foram perdendo força e o que ficou foi esta dor permanente, este remorso, este mal-estar, esta perda, este sentimento de ter sido capaz de te magoar e deixar tão desamparado. Nunca me perdoarei e este não-perdão é uma culpa definitiva.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Um grito maior do que a vida
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
Um grito na vida: Kurosawa
RAN, OS SENHORES DA GUERRA é um brilhante filme de Akira Kurosawa que combina com mestria a história do Japão, a trama de Shakespeare e a visão de Kurosawa da lealdade. Situado no Japão do século XVI, o líder ancião Lord Hidetora (Tatsuya Nakadai), anuncia a sua intenção de repartir as sua terras em partes iguais entre os seus três filhos. Esta decisão de se retirar gera uma luta de poder entre os três, quando Hidetora é vítima das falsas adulações dos dois filhos mais velhos, e desterra o mais novo quando este revela a verdade. A traição transtorna Hidetora, destruindo a sua família e o seu reino.
Um fiel reflexo dos sentimentos humanos e uma brilhante interpretação fazem de RAN, OS SENHORES DA GUERRA um dos filmes mais aclamados de todos os tempos.
Grito 21
Antes e depois de ti
Antes de ti não havia nada.
Não recordo a vida antes de ti.
E sei
Que depois de ti nada haverá
Excepto a minha memória de ti:
Em algo me há-de valer
Em algo me há-de matar.
Tantas pessoas nos rodeiam
E a possibilidade de um encontro mais próximo
Existe.
Mas
Só tu me dás a mão daquela maneira quente
Só tu me beijas a testa como se fosse a boca
Só tu me abraças sem me sufocar
Só a tua pele me é familiar, minha
Só o teu olhar me perscruta
Só as tuas palavras magoam ou contentam: interessam
Só os teus defeitos são cómicos
Só tu para mim. Só tu.
E no entanto
Nunca o sofrimento foi tão pungente
Nem a esperança tão inútil
Nem a tristeza tão triste
Nem a morte uma saída
Nem o preto tão negro.
Em que momento terei a habilidade de viver sem ti sem que isso me Transforme numa outra pessoa
Pior?
Antes de ti não havia nada.
Não recordo a vida antes de ti.
E sei
Que depois de ti nada haverá
Excepto a minha memória de ti:
Em algo me há-de valer
Em algo me há-de matar.
Tantas pessoas nos rodeiam
E a possibilidade de um encontro mais próximo
Existe.
Mas
Só tu me dás a mão daquela maneira quente
Só tu me beijas a testa como se fosse a boca
Só tu me abraças sem me sufocar
Só a tua pele me é familiar, minha
Só o teu olhar me perscruta
Só as tuas palavras magoam ou contentam: interessam
Só os teus defeitos são cómicos
Só tu para mim. Só tu.
E no entanto
Nunca o sofrimento foi tão pungente
Nem a esperança tão inútil
Nem a tristeza tão triste
Nem a morte uma saída
Nem o preto tão negro.
Em que momento terei a habilidade de viver sem ti sem que isso me Transforme numa outra pessoa
Pior?
sábado, 6 de fevereiro de 2010
Um grito na vida: Tarkovski
The Russian poet Gortchakov, accompanied by guide and translator Eugenia, is traveling through Italy researching the life of an 18th century Russian composer. In a ancient spa town, he meets the lunatic Domenico, who years earlier had imprisoned his own family in a barn to save them from the evils of the world. As Eugenia seeks to tempt Gortchakov into infidelity, he, seeing some deep truth in Domenico's act, becomes drawn to the lunatic. In a series of dreams, the poet's nostalgia for his homeland and his longing for his wife, his ambivalent feelings for Eugenia and her Italy, and his sense of kinship with Domenico become intertwined.
grito 20
A filha
Acordei com a ideia fixa de que a filha de três anos dos meus vizinhos do lado não era realmente filha deles. Aquele pedacinho de gente, tão harmoniosa, encantadora e atraente não podia ser filha de gente assim. Não que os meus vizinhos do lado fossem alguma espécie de monstros que comesse crianças ao pequeno-almoço, nem por sombras! Mas eram tão vulgares e contentes com a sua vulgaridade que não poderiam ter gerado, do seu sangue e entranhas, uma coisa tão perfeita como aquela filha, dona de um sorriso desarmante. E, por isso, resolvi investigar. Comecei por estreitar laços com a família, o que não foi difícil dada a sua disponibilidade para o disse-que-disse e coisas afins. Soube que tinham viajado pouco antes do nascimento da menina e logo o meu espírito se inquietou. Será que tinham comprado a menina algures, inventado uma gravidez que justificasse aparecerem com um bebé em casa? Não seria tão invulgar assim, estas coisas não acontecem só no cinema. Ao visionar alguns dos álbuns de família pude constatar que nenhum dos presumíveis progenitores, na sua infância, era parecido com a criança e isso aguçou-me o desejo de descobrir a verdade. Alguns dias mais tarde voltei a acordar sobressaltada ao relacionar a data da viagem deles antes da filha nascer com a minha estadia no mesmo país por essa altura e pensei que poderia investigar mais e melhor através das ligações que aí estabelecera. Retomei esses contactos, fiz várias perguntas acerca dos locais por eles referidos como tendo sido visitados, mas nenhuma pista me levava a lado nenhum. Era tudo demasiado claro, sem sombras. E a menina cada vez me parecia mais distante daquela família. Não que eles a tratassem mal, nem pensar! Ela era a menina dos olhos deles. E até isso me parecia estranho, pois a biologia é exigente e dificilmente cega quem cuida. E o amor deles por ela transbordava pelos olhos, pelos gestos, pelas palavras. Mas a dúvida não me largava. À medida que conhecia melhor a criança e me apercebia das suas potencialidades, as minhas reservas em relação à filiação aumentavam de tal forma, que chegava a ter vontade de os interrogar directa e abertamente sobre a questão. O que seria um erro, claro está. Haveriam de defender-se de todas as formas possíveis e impossíveis. Um dia, partilhei o meu receio com o meu companheiro que me respondeu sem pestanejar “és louca”! E eu calei-me e não respondi às suas questões: “porque é que pensas isso? Onde foste buscar essa ideia? O que aconteceu para te levar a pensar isso?” e por aí fora… E eis que um dia, talvez o dia mais estranho da minha pacata vida, acordo com o pensamento entranhado de que aquela criança era minha filha, sangue do meu sangue, carne da minha carne. Tudo o resto não interessava. Só esse pensamento me movia. Só essa convicção me levava a manter a minha vida aparentemente normal, para poder prosseguir com a descoberta da verdade. Não me lembrava de ter estado grávida, mas podia padecer de algum problema de memória grave, ou mesmo de uma doença que me impedisse de recordar, que me impedisse de tomar conta de uma criança; ou, quem sabe, poderia ter feito algo de tão terrível que estava interdita do contacto com a minha própria filha. Estas dúvidas rapidamente se transformavam em convicções e era tomada de assalto por sentimentos de desgosto e tristeza. Quando via a criança, e cada vez a via mais porque sentia essa necessidade, achava que ela estava a ficar parecida comigo, a ponto de um dia alguém poder notar que eu era, de facto, a verdadeira mãe, a mãe biológica. Não podia dividir estas preocupações com ninguém, mas acabei por o fazer, de novo com o meu companheiro. Ele avisou-me “se continuares com esses disparates, interno-te”. Porque será que ele não queria ver o que para mim era tão evidente? Talvez ele não fosse o pai e tivesse conspirado com os meus vizinhos toda esta história maluca. Eu não podia estar louca: reconhecia que a história era de doidos; mas não conseguia deixar de pensar que tinha razão. Foi então que uma ideia se começou a impor ao meu espírito de forma inequívoca. Passei a saber exactamente o que devia fazer para resolver aquele problema. Organizei-me de acordo com essa ideia e tive a paciência de aguardar a altura certa. A campainha tocou e eu abri a porta. Era a mãe da menina. Como vai? Como vai? Pode ir buscá-la ao colégio hoje? Perguntou a mãe, abusando do carinho que sabia que eu nutria pela filha. Claro que sim, foi a minha resposta. Sem mais. À hora marcada fui buscar a criança, que me foi entregue por uma educadora que já me conhecia de tantas e tantas vezes ir lá. Sentei-a adequadamente numa cadeirinha que tinha adquirido para o efeito e parti com ela. Durante os primeiros trezentos, quatrocentos quilómetros pensei que ainda era possível voltar atrás ao que era antes disto. Mas depois, espreitava pelo retrovisor e via aquele rosto a descansar com uma expressão de anjo e pensava “és minha”. E parti com algo de meu, sem destino, mas sabendo que cada passo em frente significava a cisão definitiva entre o antes e o depois. Amei esta criança até eu morrer. Foi minha filha até eu morrer. E nunca me arrependi de a ter ido buscar ao colégio naquele dia.
Acordei com a ideia fixa de que a filha de três anos dos meus vizinhos do lado não era realmente filha deles. Aquele pedacinho de gente, tão harmoniosa, encantadora e atraente não podia ser filha de gente assim. Não que os meus vizinhos do lado fossem alguma espécie de monstros que comesse crianças ao pequeno-almoço, nem por sombras! Mas eram tão vulgares e contentes com a sua vulgaridade que não poderiam ter gerado, do seu sangue e entranhas, uma coisa tão perfeita como aquela filha, dona de um sorriso desarmante. E, por isso, resolvi investigar. Comecei por estreitar laços com a família, o que não foi difícil dada a sua disponibilidade para o disse-que-disse e coisas afins. Soube que tinham viajado pouco antes do nascimento da menina e logo o meu espírito se inquietou. Será que tinham comprado a menina algures, inventado uma gravidez que justificasse aparecerem com um bebé em casa? Não seria tão invulgar assim, estas coisas não acontecem só no cinema. Ao visionar alguns dos álbuns de família pude constatar que nenhum dos presumíveis progenitores, na sua infância, era parecido com a criança e isso aguçou-me o desejo de descobrir a verdade. Alguns dias mais tarde voltei a acordar sobressaltada ao relacionar a data da viagem deles antes da filha nascer com a minha estadia no mesmo país por essa altura e pensei que poderia investigar mais e melhor através das ligações que aí estabelecera. Retomei esses contactos, fiz várias perguntas acerca dos locais por eles referidos como tendo sido visitados, mas nenhuma pista me levava a lado nenhum. Era tudo demasiado claro, sem sombras. E a menina cada vez me parecia mais distante daquela família. Não que eles a tratassem mal, nem pensar! Ela era a menina dos olhos deles. E até isso me parecia estranho, pois a biologia é exigente e dificilmente cega quem cuida. E o amor deles por ela transbordava pelos olhos, pelos gestos, pelas palavras. Mas a dúvida não me largava. À medida que conhecia melhor a criança e me apercebia das suas potencialidades, as minhas reservas em relação à filiação aumentavam de tal forma, que chegava a ter vontade de os interrogar directa e abertamente sobre a questão. O que seria um erro, claro está. Haveriam de defender-se de todas as formas possíveis e impossíveis. Um dia, partilhei o meu receio com o meu companheiro que me respondeu sem pestanejar “és louca”! E eu calei-me e não respondi às suas questões: “porque é que pensas isso? Onde foste buscar essa ideia? O que aconteceu para te levar a pensar isso?” e por aí fora… E eis que um dia, talvez o dia mais estranho da minha pacata vida, acordo com o pensamento entranhado de que aquela criança era minha filha, sangue do meu sangue, carne da minha carne. Tudo o resto não interessava. Só esse pensamento me movia. Só essa convicção me levava a manter a minha vida aparentemente normal, para poder prosseguir com a descoberta da verdade. Não me lembrava de ter estado grávida, mas podia padecer de algum problema de memória grave, ou mesmo de uma doença que me impedisse de recordar, que me impedisse de tomar conta de uma criança; ou, quem sabe, poderia ter feito algo de tão terrível que estava interdita do contacto com a minha própria filha. Estas dúvidas rapidamente se transformavam em convicções e era tomada de assalto por sentimentos de desgosto e tristeza. Quando via a criança, e cada vez a via mais porque sentia essa necessidade, achava que ela estava a ficar parecida comigo, a ponto de um dia alguém poder notar que eu era, de facto, a verdadeira mãe, a mãe biológica. Não podia dividir estas preocupações com ninguém, mas acabei por o fazer, de novo com o meu companheiro. Ele avisou-me “se continuares com esses disparates, interno-te”. Porque será que ele não queria ver o que para mim era tão evidente? Talvez ele não fosse o pai e tivesse conspirado com os meus vizinhos toda esta história maluca. Eu não podia estar louca: reconhecia que a história era de doidos; mas não conseguia deixar de pensar que tinha razão. Foi então que uma ideia se começou a impor ao meu espírito de forma inequívoca. Passei a saber exactamente o que devia fazer para resolver aquele problema. Organizei-me de acordo com essa ideia e tive a paciência de aguardar a altura certa. A campainha tocou e eu abri a porta. Era a mãe da menina. Como vai? Como vai? Pode ir buscá-la ao colégio hoje? Perguntou a mãe, abusando do carinho que sabia que eu nutria pela filha. Claro que sim, foi a minha resposta. Sem mais. À hora marcada fui buscar a criança, que me foi entregue por uma educadora que já me conhecia de tantas e tantas vezes ir lá. Sentei-a adequadamente numa cadeirinha que tinha adquirido para o efeito e parti com ela. Durante os primeiros trezentos, quatrocentos quilómetros pensei que ainda era possível voltar atrás ao que era antes disto. Mas depois, espreitava pelo retrovisor e via aquele rosto a descansar com uma expressão de anjo e pensava “és minha”. E parti com algo de meu, sem destino, mas sabendo que cada passo em frente significava a cisão definitiva entre o antes e o depois. Amei esta criança até eu morrer. Foi minha filha até eu morrer. E nunca me arrependi de a ter ido buscar ao colégio naquele dia.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
Um grito na vida: Malick
One-of-a-kind filmmaker-philosopher Terrence Malick has created some of the most visually arresting films of the twentieth century, and his glorious period tragedy Days of Heaven, featuring Oscar-winning cinematography by Nestor Almendros, stands out among them. In 1910, a Chicago steelworker (Richard Gere) accidentally kills his supervisor, and he, his girlfriend (Brooke Adams), and his little sister (Linda Manz) flee to the Texas panhandle, where they find work harvesting wheat in the fields of a stoic farmer (Sam Shepard). A love triangle, a swarm of locusts, a hellish fire—Malick captures it all with dreamlike authenticity, creating a timeless American idyll that is also a gritty evocation of turn-of-the-century labor.
Grito 19
SONHOS
No patamar do andar onde vivi a minha infância presencio a seguinte cena: um presumível ladrão vira a minha mãe contra a parede e açoita-a no rabo com um chinelo. Assisto à cena impotente e acordo sempre aflita deste sonho que se repetiu inúmeras vezes durante a minha meninice e algumas durante o resto do tempo. Bater com o chinelo no rabo era uma forma de castigo que o meu pai utilizava comigo. Este sonho era a preto e branco.
O meu primeiro sonho a cores foi talvez o sonho mais simples de que me lembro: o de uma porta pintada de azul. A porta era muito grande, ocupava quase todo o meu espaço visual e o pouco que não ocupava era preenchido por um bocado de parede vermelha. As cores eram muito vivas e nítidas e nunca duvidei deste sonho.
Sonho que estou a brincar num planalto cheio de relva muito verde e fresca e de repente começo a deslizar pela inclinação da montanha que se acentua cada vez mais e caio em direcção ao precipício sem nunca ter chegado ao fim do sonho e acordo sempre neste momento de queda numa enorme aflição.
Tenho um sonho erótico com uma figura pública. Essa figura nem sequer me é particularmente querida e nisso reside a estranheza do sonho. O erotismo não é factual, vive de sensações. Essa personagem aproxima-se de mim e abraça-me com muito carinho e diz-me algumas palavras junto do pescoço. Essas plavaras tinham o objectivo de me excitar e não de serem ouvidas. Acordo estimulada e zangada por ter acordado.
Não consigo respirar. Preciso de realizar inúmeras tarefas, estou preocupadíssima com alguma coisa, mas não consigo fazer nada porque não posso respirar. Cada tarefa que realizo recorda-me as mil e uma que não realizei. São tarefas inglórias. Sempre com uma enorme dificuldade em respirar. Acordo cansada e a precisar de beber água.
Vens ter comigo e pedes-me desculpa. Faço-me cara, mas acabo por te desculpar e surge o abraço antigo e a memória desse abraço é tão devastadora que acordo a chorar.
Ordenas-me que me venha pelos olhos, em pleno acto sexual. Esforço-me muito mas não o consigo. Estás sempre a dizer o mesmo e eu quero parar mas não o permites: só quando te vieres pelos olhos, ameaças. E começo a chorar no sonho e continuo quando acordo.
Sangro pela boca como se fosse uma fonte. À minha volta as pessoas apreciam o espectáculo e nada fazem para me ajudar. Apertam-me os dedos e eu deixo de sangrar. Quando olho para o lado para ver quem me tinha apertado os dedos e agradecer, voltam a apertar-me os dedos e eu sangro de novo pela boca como se fosse uma fonte. Acordo com sabor a sangue na boca.
No patamar do andar onde vivi a minha infância presencio a seguinte cena: um presumível ladrão vira a minha mãe contra a parede e açoita-a no rabo com um chinelo. Assisto à cena impotente e acordo sempre aflita deste sonho que se repetiu inúmeras vezes durante a minha meninice e algumas durante o resto do tempo. Bater com o chinelo no rabo era uma forma de castigo que o meu pai utilizava comigo. Este sonho era a preto e branco.
O meu primeiro sonho a cores foi talvez o sonho mais simples de que me lembro: o de uma porta pintada de azul. A porta era muito grande, ocupava quase todo o meu espaço visual e o pouco que não ocupava era preenchido por um bocado de parede vermelha. As cores eram muito vivas e nítidas e nunca duvidei deste sonho.
Sonho que estou a brincar num planalto cheio de relva muito verde e fresca e de repente começo a deslizar pela inclinação da montanha que se acentua cada vez mais e caio em direcção ao precipício sem nunca ter chegado ao fim do sonho e acordo sempre neste momento de queda numa enorme aflição.
Tenho um sonho erótico com uma figura pública. Essa figura nem sequer me é particularmente querida e nisso reside a estranheza do sonho. O erotismo não é factual, vive de sensações. Essa personagem aproxima-se de mim e abraça-me com muito carinho e diz-me algumas palavras junto do pescoço. Essas plavaras tinham o objectivo de me excitar e não de serem ouvidas. Acordo estimulada e zangada por ter acordado.
Não consigo respirar. Preciso de realizar inúmeras tarefas, estou preocupadíssima com alguma coisa, mas não consigo fazer nada porque não posso respirar. Cada tarefa que realizo recorda-me as mil e uma que não realizei. São tarefas inglórias. Sempre com uma enorme dificuldade em respirar. Acordo cansada e a precisar de beber água.
Vens ter comigo e pedes-me desculpa. Faço-me cara, mas acabo por te desculpar e surge o abraço antigo e a memória desse abraço é tão devastadora que acordo a chorar.
Ordenas-me que me venha pelos olhos, em pleno acto sexual. Esforço-me muito mas não o consigo. Estás sempre a dizer o mesmo e eu quero parar mas não o permites: só quando te vieres pelos olhos, ameaças. E começo a chorar no sonho e continuo quando acordo.
Sangro pela boca como se fosse uma fonte. À minha volta as pessoas apreciam o espectáculo e nada fazem para me ajudar. Apertam-me os dedos e eu deixo de sangrar. Quando olho para o lado para ver quem me tinha apertado os dedos e agradecer, voltam a apertar-me os dedos e eu sangro de novo pela boca como se fosse uma fonte. Acordo com sabor a sangue na boca.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Um grito na vida: Antonioni
Grito 18
Tanta terra entre nós
Tanta terra entre nós... E este encosto que é o tempo. Temos tempo. De nos vermos. De nos conhecermos. De estarmos juntos. Mas não havia tempo. Não havia nenhum mês, semana, ano, dia, segundo para nós. E tantos filmes a passarem-me pela cabeça. Primeiro, pensei que eras impotente e que precisavas destas histórias para te excitares um pouco, desde que elas não tivessem consequência e fossem apenas sonhos acordados onde pudesses ser aquilo que querias realmente fazer. Esta ideia nunca mais me saiu da cabeça. Depois, pensei todas as outras vulgaridades dos desencontros, que eras casado, amordaçado por uma mulher seca e castradora, que eras falso, mentiroso, que tinhas filhas tiranas e que eras um depressivo à beira do suicídio que precisava destas histórias para viver menos velho, desactualizado e datado. Tinhas uma memória de elefante, de facto, o que me levou a pensar que eras culto, mas não eras. Não sabias nada da vida de hoje, excepto o tipo de cuecas que as mulheres usam, agora, e achavas isso uma grande qualidade, uma modernice tua, tu, que querias desprezar as modernices como os motéis e outros antros afins. Tinhas um EU do tamanho do mundo: só tu. O resto rodeava-te, envolvia-te, invejava-te, desejava-te, fazia-te vénias, premiava-te. E, sim, é verdade que tens uma voz única, mas as tuas histórias repetem-se em cada livro e, por isso, afirmas todos os dias, que não são as histórias que te interessam. Mas o que seria de ti sem elas? Vives delas. Das que vives e das que usurpas aos outros e fazes tuas, como um dono do mundo. Mordes a mão que te alimenta. Devias trincar a língua de cada vez que mentes ou alguém podia pôr-te pimenta na língua como se faz às crianças, quando mentem.
Tanta terra entre nós... E este encosto que é o tempo. Temos tempo. De nos vermos. De nos conhecermos. De estarmos juntos. Mas não havia tempo. Não havia nenhum mês, semana, ano, dia, segundo para nós. E tantos filmes a passarem-me pela cabeça. Primeiro, pensei que eras impotente e que precisavas destas histórias para te excitares um pouco, desde que elas não tivessem consequência e fossem apenas sonhos acordados onde pudesses ser aquilo que querias realmente fazer. Esta ideia nunca mais me saiu da cabeça. Depois, pensei todas as outras vulgaridades dos desencontros, que eras casado, amordaçado por uma mulher seca e castradora, que eras falso, mentiroso, que tinhas filhas tiranas e que eras um depressivo à beira do suicídio que precisava destas histórias para viver menos velho, desactualizado e datado. Tinhas uma memória de elefante, de facto, o que me levou a pensar que eras culto, mas não eras. Não sabias nada da vida de hoje, excepto o tipo de cuecas que as mulheres usam, agora, e achavas isso uma grande qualidade, uma modernice tua, tu, que querias desprezar as modernices como os motéis e outros antros afins. Tinhas um EU do tamanho do mundo: só tu. O resto rodeava-te, envolvia-te, invejava-te, desejava-te, fazia-te vénias, premiava-te. E, sim, é verdade que tens uma voz única, mas as tuas histórias repetem-se em cada livro e, por isso, afirmas todos os dias, que não são as histórias que te interessam. Mas o que seria de ti sem elas? Vives delas. Das que vives e das que usurpas aos outros e fazes tuas, como um dono do mundo. Mordes a mão que te alimenta. Devias trincar a língua de cada vez que mentes ou alguém podia pôr-te pimenta na língua como se faz às crianças, quando mentem.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
Grito 17
Tu
Perdeste o teu caminho, não sabes quem és, onde estás, para onde vais. Perto de ti, todas as pessoas parecem ter projectos, objectivos, futuro. Compreendes o que deixaste para trás, mas mais ninguém compreende. Só tu. E oscilas entre o perdão a ti próprio ou a revolta contra os outros. Qualquer coisa te deprime, te desmotiva. Qualquer coisa te alegra. Tudo parece ser uma possibilidade mas nada se concretiza. Não tens filhos: nada nasce de ti. Durante algum tempo acreditaste ser um artista com “alma peregrina”. Agora és um artista em potência. Se não fosses o presente, o que gostarias de ser?
Invejas a gravidez daquela mulher, a silhueta da outra, o rosto de uma outra, a inteligência desta, a disponibilidade dessa, o dinheiro dela, o amor que ela suscita, o desejo que inspira. Invejas a facilidade com que aquela mulher vive, a complexidade e riqueza interior da outra, os gestos de uma outra, a voz desta, a ambiguidade dessa, o mistério dela, a postura e a sua disciplina. Invejas a feminilidade de todas as mulheres. E imitas, copias, repetes, ensaias, esforças-te. Mas não és capaz. E essa incapacidade aperta-te o sexo que se dissolve dentro de ti, desaparece. Cresce-te pelo na cara, os seios descaem, engordas, cai-te o cabelo e começas a invejar os homens.
Haverá alguma verdade nas tuas palavras, nos teus olhos, em ti? Quem és tu? Às vezes penso que só existes para me baralhar e que, depois, quando sais de ao pé de mim deixas de existir. Só eu te faço existir e tu só tens a função de me confundir, enervar, complicar. Os teus olhos têm uma cor única, indescritível, quase vermelhos e amarelos, irreais. Falas com a candura dos anjos mas dizes coisas terríveis, sérias e importantes. Quando acabas de falar ris com sarcasmo o que retira credibilidade a tudo o que dizes. Nunca sei se falas a sério ou não. Há dias reparei que as tuas mãos eram de uma cor diferente do rosto e dos braços. Tinham alguma luminosidade. Não me atrevi a tocá-las: tive medo que não fossem tocáveis. Não tens espessura e mudas de cor com o tempo.
Perdeste o teu caminho, não sabes quem és, onde estás, para onde vais. Perto de ti, todas as pessoas parecem ter projectos, objectivos, futuro. Compreendes o que deixaste para trás, mas mais ninguém compreende. Só tu. E oscilas entre o perdão a ti próprio ou a revolta contra os outros. Qualquer coisa te deprime, te desmotiva. Qualquer coisa te alegra. Tudo parece ser uma possibilidade mas nada se concretiza. Não tens filhos: nada nasce de ti. Durante algum tempo acreditaste ser um artista com “alma peregrina”. Agora és um artista em potência. Se não fosses o presente, o que gostarias de ser?
Invejas a gravidez daquela mulher, a silhueta da outra, o rosto de uma outra, a inteligência desta, a disponibilidade dessa, o dinheiro dela, o amor que ela suscita, o desejo que inspira. Invejas a facilidade com que aquela mulher vive, a complexidade e riqueza interior da outra, os gestos de uma outra, a voz desta, a ambiguidade dessa, o mistério dela, a postura e a sua disciplina. Invejas a feminilidade de todas as mulheres. E imitas, copias, repetes, ensaias, esforças-te. Mas não és capaz. E essa incapacidade aperta-te o sexo que se dissolve dentro de ti, desaparece. Cresce-te pelo na cara, os seios descaem, engordas, cai-te o cabelo e começas a invejar os homens.
Haverá alguma verdade nas tuas palavras, nos teus olhos, em ti? Quem és tu? Às vezes penso que só existes para me baralhar e que, depois, quando sais de ao pé de mim deixas de existir. Só eu te faço existir e tu só tens a função de me confundir, enervar, complicar. Os teus olhos têm uma cor única, indescritível, quase vermelhos e amarelos, irreais. Falas com a candura dos anjos mas dizes coisas terríveis, sérias e importantes. Quando acabas de falar ris com sarcasmo o que retira credibilidade a tudo o que dizes. Nunca sei se falas a sério ou não. Há dias reparei que as tuas mãos eram de uma cor diferente do rosto e dos braços. Tinham alguma luminosidade. Não me atrevi a tocá-las: tive medo que não fossem tocáveis. Não tens espessura e mudas de cor com o tempo.
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