quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Grito 22

Culpa

Acordo de manhã e sinto-me livre, solta, sem obrigações, estou por minha conta hoje, tenho um dia inteiro só para mim, fazer o que me apetece, obedecer aos impulsos. Sinto-me sempre bem quando tenho um dia assim. Salto da cama, alimento-me e volto para a cama. Adormeço e acordo de forma intermitente mas sem angústia. Escolho um filme, coloco-o na aparelhagem adequada e vejo-o com olhos de comer. No fim, revejo certas passagens que considero fabulosas. Pego no meu bloco de cabeceira e rabisco algumas considerações sobre o filme e a direcção de actores. Volto a dormir um pouco e acordo com fome. Depois do banho resolvo ir almoçar fora, comer algo que eu goste muito. Vou ao centro comercial mais próximo de casa e depois do almoço compro um livro para ler durante a tarde. Tenho o telefone desligado e sabe-me bem saber que ninguém me incomodará durante o resto do dia. Não sei quando começou a impor-se em mim esta vontade de estar só, mas cada vez é mais premente e importante. Regresso a casa e a sua quietude é tudo o que desejo. Encosto-me no sofá e começo a ler avidamente. Interiormente começo a fazer a contagem decrescente para o fim deste sossego que tanto preciso e desejo, mas resolvo aproveitar e não pensar em ponteiros. Fico agarrada à leitura até anoitecer e termina o descanso. Inicio então a tarefa de apagar os vestígios deixados do meu dia de folga, ninguém percebe esta vontade de estar só e fazer coisas simples e evitar os outros. Faço a cama, arrumo coisas, limpo outras e os outros começam a entrar em casa. Respiro fundo. É certo que são pessoas que amo, do meu sangue, mas basta-me saber que estão bem para me sentir bem, não preciso de as ter perto de mim. Chegam cheios de acontecimentos para relatar e ouço-os com o distanciamento de quem não esteve lá porque não quis. Prepara-se uma refeição para todos e todos parecem tantos. Tantos “eus” com as suas singularidades a precisarem de uma atenção específica, de uma palavra adequada, de um pouco do meu “eu”. A noite cai e é o regresso barulhento aos quartos, com inúmeros recados para o dia seguinte. E depois, finalmente, o silêncio. E é nestes momentos, em que regresso a mim, que a culpa volta a reaparecer. Insinuando-se, primeiro, e depois instalando-se. E a tua imagem de dor, sofrimento, desespero a cravar-se nos meus olhos cerrados e a única palavra que me ocorre é “perdão”. Perdão por ter deserotizado a tua pessoa e digo isto porque não posso dizer que deixei de te amar. Amo-te de forma fraternal, como sempre amei, mesmo quando te desejava. Mas um dia o desejo desapareceu e não consegui fingir durante muito tempo. Eras um optimista, acreditavas que era uma fase passageira, mas estavas enganado e eu desenganei-te rapidamente. Apaixonei-me por outra pessoa e, como romântica empedernida que era, acreditava que o amor mudava o mundo e, por isso, eu teria que mudar de vida. Deixei-te. Mas nunca me separei afectivamente de ti: a tua dor é a minha dor, o teu desespero é o meu desespero, o teu bem-estar é o meu bem-estar. Adquiriste o estatuto de um pai doente, o único que tive e que não posso abandonar. Mas que abandonei e essa constatação despedaça-me por dentro e por fora. Sou uma sombra do que fui ou do que poderia ser. A culpa corrói-nos e destrói a esperança. Sentimos a culpa como um destino e arranjamos desculpa para ela: não podia viver com um pai, não podia coabitar com alguém que tinha deixado de desejar, não podia partilhar a intimidade de uma casa com um amigo. Durante algum tempo, estas desculpas atenuaram a culpa, mas aos poucos foram perdendo força e o que ficou foi esta dor permanente, este remorso, este mal-estar, esta perda, este sentimento de ter sido capaz de te magoar e deixar tão desamparado. Nunca me perdoarei e este não-perdão é uma culpa definitiva.

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