quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Grito 25

Desencontro

Um telefone toca. Toca, toca uma vez e outra. Mas não há ninguém que o atenda e este é o epíteto do que poderia ter sido uma comovente história de amor. Ninguém atendeu o telefone e esse telefonema inaugurava uma vida nova. Se, por acaso, tivesse atendido o telefone, nesse momento, ter-me-ias notificado do teu amor, ao qual sucumbiria, não sei se por conveniência da idade, se por solidão ou se apenas por te poder notificar do mesmo, na volta. Teria subtraído da minha vida outras pessoas, outros acontecimentos, outros festejos e lamentos. Mas eu não atendi o telefone, simplesmente. Não disse “está lá?” com voz interrogativa ao que responderias “olá!” reconhecendo de imediato a minha voz. E o grão da tua voz poderia ter percorrido a minha coluna vertebral e isso ser a luz que iluminaria o rumo da conversa. Mas não. Porque telefonaste na minha ausência? Porque falhei o teu telefonema? Em que momento dissemos adeus sem o sabermos? Em que altura roçamos os nossos destinos sem que eles se cruzassem? Pode ter sido um semáforo, a chuva, uma conversa mais demorada, um cigarro a mais, uma compra de última hora, um filme imperdível, um casaco entregue na lavandaria, uma música mais alta, outra pessoa, o porteiro, o correio, um mundo inteiro de ocasiões para sacrificar o teu telefonema. Terei ouvido o telefone tocar e decidido não atender? Não sabia que eras tu. Apenas não me senti motivada para atender o telefonema. Ou quem sabe, quando decidi atendê-lo, do outro lado já o tinham desligado. Um fragmento de tempo atraiçoou-nos, condenou-nos à perda um do outro. Ter-me-ias prometido a lua? E eu que andava tanto a precisar que me prometessem a lua e arredores. A precisar de um pouco de sonho e cor para levar a bom porto as minhas tarefas, cada vez mais pesadas. Ter-me-ias mentido? Juras de fidelidade e amizade para sempre? Se soubesses o quando eu precisava dessas doces mentiras para amaciar o meu dia a dia, terias tentado telefonar de novo. Invento o teu telefonema como o que de melhor me poderia ter acontecido. Não o ter atendido, como o grande desencontro da minha vida. Por esta altura, eu estava disposta a amar, a acreditar, a fechar os olhos e sonhar. Até a procriar… quem sabe. Mas eu não atendi o telefone e, no dia seguinte, a rotina sobrepôs-se a tudo e tu deixaste de telefonar, aparecer e eu fui vivendo ignorando que te tinha falhado, escapado. As nossas vidas afastaram-se de uma forma tão natural, que ninguém, nem nós suporíamos o que teríamos sido juntos, o quanto ficámos aquém do que fomos, um sem o outro.
Anos e anos depois do telefonema que não chegou a acontecer, encontramo-nos tão ocasionalmente quanto nos tínhamos desencontrado anos atrás. Parecemos reconhecer um no outro aquilo que não tínhamos sido e deixamos que o silêncio se apoderasse do nosso olhar e foi tão triste quanto um natal sem prendas para quem as espera. Anoiteceu no nosso encontro fora do tempo e continuamos a olhar-nos, silenciosos, perdidos e achados, mas sem vida para dar ao outro, sem espaço, sem dor. A noite veio encobrir as nossas rugas, as nossas lágrimas, as nossas não-palavras, o nosso passado, o nosso futuro. Teríamos sido um e soubemo-lo naquele momento. Agora éramos um dividido ao meio. Anoiteceu no nosso encontro para esconder a crueldade que foi encontrarmo-nos tanto tempo fora do tempo. Se tivesse sabido que não podia faltar àquela chamada que foi o teu telefonema teria rasgado qualquer cenário, teria morrido por isso. O que será a nossa vida depois do encontro-pós-desencontro? Um areal de “ses” e “comos” irrespondíveis, uma angústia velha e enrugada como os nossos rostos, onde lemos a vida um do outro sem termos sentido a necessidade de falar. Para quê as palavras, agora? Tão tarde, tão escuro, tão sem sentido, tão velhos, tão desistentes, tão prontos para outra morte, tão descrentes em finais felizes. Foi difícil descolarmos o olhar um do outro, éramos o espelho um do outro. E eis que o ciclo do tempo se precipita e ora é de dia, ora é de noite, tão velozmente que desperto em casa. E tu foste aquele que telefonou sem que eu lhe tivesse atendido o telefone.

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