A filha
Acordei com a ideia fixa de que a filha de três anos dos meus vizinhos do lado não era realmente filha deles. Aquele pedacinho de gente, tão harmoniosa, encantadora e atraente não podia ser filha de gente assim. Não que os meus vizinhos do lado fossem alguma espécie de monstros que comesse crianças ao pequeno-almoço, nem por sombras! Mas eram tão vulgares e contentes com a sua vulgaridade que não poderiam ter gerado, do seu sangue e entranhas, uma coisa tão perfeita como aquela filha, dona de um sorriso desarmante. E, por isso, resolvi investigar. Comecei por estreitar laços com a família, o que não foi difícil dada a sua disponibilidade para o disse-que-disse e coisas afins. Soube que tinham viajado pouco antes do nascimento da menina e logo o meu espírito se inquietou. Será que tinham comprado a menina algures, inventado uma gravidez que justificasse aparecerem com um bebé em casa? Não seria tão invulgar assim, estas coisas não acontecem só no cinema. Ao visionar alguns dos álbuns de família pude constatar que nenhum dos presumíveis progenitores, na sua infância, era parecido com a criança e isso aguçou-me o desejo de descobrir a verdade. Alguns dias mais tarde voltei a acordar sobressaltada ao relacionar a data da viagem deles antes da filha nascer com a minha estadia no mesmo país por essa altura e pensei que poderia investigar mais e melhor através das ligações que aí estabelecera. Retomei esses contactos, fiz várias perguntas acerca dos locais por eles referidos como tendo sido visitados, mas nenhuma pista me levava a lado nenhum. Era tudo demasiado claro, sem sombras. E a menina cada vez me parecia mais distante daquela família. Não que eles a tratassem mal, nem pensar! Ela era a menina dos olhos deles. E até isso me parecia estranho, pois a biologia é exigente e dificilmente cega quem cuida. E o amor deles por ela transbordava pelos olhos, pelos gestos, pelas palavras. Mas a dúvida não me largava. À medida que conhecia melhor a criança e me apercebia das suas potencialidades, as minhas reservas em relação à filiação aumentavam de tal forma, que chegava a ter vontade de os interrogar directa e abertamente sobre a questão. O que seria um erro, claro está. Haveriam de defender-se de todas as formas possíveis e impossíveis. Um dia, partilhei o meu receio com o meu companheiro que me respondeu sem pestanejar “és louca”! E eu calei-me e não respondi às suas questões: “porque é que pensas isso? Onde foste buscar essa ideia? O que aconteceu para te levar a pensar isso?” e por aí fora… E eis que um dia, talvez o dia mais estranho da minha pacata vida, acordo com o pensamento entranhado de que aquela criança era minha filha, sangue do meu sangue, carne da minha carne. Tudo o resto não interessava. Só esse pensamento me movia. Só essa convicção me levava a manter a minha vida aparentemente normal, para poder prosseguir com a descoberta da verdade. Não me lembrava de ter estado grávida, mas podia padecer de algum problema de memória grave, ou mesmo de uma doença que me impedisse de recordar, que me impedisse de tomar conta de uma criança; ou, quem sabe, poderia ter feito algo de tão terrível que estava interdita do contacto com a minha própria filha. Estas dúvidas rapidamente se transformavam em convicções e era tomada de assalto por sentimentos de desgosto e tristeza. Quando via a criança, e cada vez a via mais porque sentia essa necessidade, achava que ela estava a ficar parecida comigo, a ponto de um dia alguém poder notar que eu era, de facto, a verdadeira mãe, a mãe biológica. Não podia dividir estas preocupações com ninguém, mas acabei por o fazer, de novo com o meu companheiro. Ele avisou-me “se continuares com esses disparates, interno-te”. Porque será que ele não queria ver o que para mim era tão evidente? Talvez ele não fosse o pai e tivesse conspirado com os meus vizinhos toda esta história maluca. Eu não podia estar louca: reconhecia que a história era de doidos; mas não conseguia deixar de pensar que tinha razão. Foi então que uma ideia se começou a impor ao meu espírito de forma inequívoca. Passei a saber exactamente o que devia fazer para resolver aquele problema. Organizei-me de acordo com essa ideia e tive a paciência de aguardar a altura certa. A campainha tocou e eu abri a porta. Era a mãe da menina. Como vai? Como vai? Pode ir buscá-la ao colégio hoje? Perguntou a mãe, abusando do carinho que sabia que eu nutria pela filha. Claro que sim, foi a minha resposta. Sem mais. À hora marcada fui buscar a criança, que me foi entregue por uma educadora que já me conhecia de tantas e tantas vezes ir lá. Sentei-a adequadamente numa cadeirinha que tinha adquirido para o efeito e parti com ela. Durante os primeiros trezentos, quatrocentos quilómetros pensei que ainda era possível voltar atrás ao que era antes disto. Mas depois, espreitava pelo retrovisor e via aquele rosto a descansar com uma expressão de anjo e pensava “és minha”. E parti com algo de meu, sem destino, mas sabendo que cada passo em frente significava a cisão definitiva entre o antes e o depois. Amei esta criança até eu morrer. Foi minha filha até eu morrer. E nunca me arrependi de a ter ido buscar ao colégio naquele dia.
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