Folhas brancas
As folhas em branco sempre me perturbaram muito pelas possibilidades que suscitam: um desenho, um poema, uma obra-prima, uma ideia, um rascunho, um lixo, um princípio. E isto não teria nenhuma importância se este pensamento não me assaltasse sempre, mas sempre, que me deparo com uma folha em branco. Chego mesmo a pensar que uma folha em branco é o lugar mais criativo do mundo.
Emociona-me recordar a m.m., com quatro anitos, encavalitada numa cadeira da mesa da sala de jantar, debruçada sobre uma folha branca a desenhar um “avô” com um “dói-dói” no lugar do coração, no dia da operação cardíaca a que o avô teve que submeter-se. Emociona-me recordar o vídeo de f., também criança de 3 ou 4 anos, tão inseguro e trémulo, a pintar, isto é, a acertar as pinceladas às cores numa folha branca.
Queria ter agarrado estes momentos, tê-los fixados para sempre… Ficaram as folhas, já não em branco, amarelecidas pelo tempo, diferentes da memória que delas tenho e ficaram-me estas imagens na memória. O que não muda nunca é o que sinto de cada vez que evoco estes momentos proporcionados por uma página em branco.
E o mais engraçado é que a folha nem sequer precisa de ser branca, pode ser verde, azul, amarela, mas se não tiver nada escrito ou desenhado ou impresso, é considerada uma folha em branco, isto é, uma folha vazia de informação e disponível para receber qualquer uma.
Associo sim a ideia da folha em branco à infância e a explicação é fácil: a infância é a nossa suposta folha em branco, é quando tudo vai começar, é quando tudo se pode renovar. Claro que o que já éramos antes de sermos crianças pode ser muito interessante, mas não para aqui, não para agora. Adoro pensar em salas cheias de crianças efervescentes, sentadas nas suas pequenas cadeiras, rodeadas de lápis de cor e de canetas de feltro e com a sua folha em branco à frente. Quando deixam de ser folhas em branco, quantas histórias há para contar acerca delas, mas quem está lá para o fazer?
Um dia deparei-me com o significado profundo desta coisa que é ter uma folha em branco à nossa frente e a obrigatoriedade de lhe dar algum conteúdo. Então, comecei a escrever e nunca mais parei. Escrevi as coisas mais horríveis, mais ternas, mais verdadeiras e mais improváveis, mas nunca mais deixei de escrever. Às vezes estranho não ter ficado presa ao desenho que sempre admirei e que muito me atraía. Mas o talento não acompanha quem quer e tive que me resignar às palavras. Na verdade, primeiro às letras, depois às palavras, mais tarde histórias e cheguei até a andar pelos pensamentos.
Não sou uma escritora, não se é uma escritora porque se escreve umas coisas, até mesmo uns livros. É-se uma escritora quando se muda o mundo através de um olhar diferente sobre as coisas e se é capaz de por isso numa folha de papel (ou em várias).
Mas que há beleza numa folha em branco, isso há. Gostar de folhas em branco deve ser um princípio para se gostar de vir a trabalhar com elas, mais cedo ou mais tarde: ser um escritor, um desenhador, um arquivista, um empregado de balcão numa papelaria, um arquitecto, um pintor…devem começar por aqui: o deleite da folha em branco e as suas inúmeras possibilidades.
Quando a folha deixa de estar em branco, algo de nós fica nela, fica com ela e nós podemos guardá-la com aquilo que ela guarda de nós. Nem todas as nossas folhas brancas são passíveis de serem vistas por terceiros e, sobretudo algumas, por nós. Trazem tanta verdade agarrada, presa que nos destruiria. E é preciso que continuemos a ver o mundo através de quem somos, esquecendo que a maior parte das vezes os nossos olhos, as nossas mãos nos traem, os nossos ouvidos nos enganam e a nossa imaginação… mas o que seria das folhas em branco sem a imaginação, sem esta fome de infinito?
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário