Desabafo
Já conhecia o teu irmão antes de te ver pela primeira vez. E ele era louco como o mundo, sim, era. Imprevisível, instável. Não tinha a tua candura nem encanto. Mas a sua loucura era contagiante, arrebatadora, promissora de mundos ímpares e diferentes. Num dia pendia para ti, no outro pendia para ele. Oscilando assim, tinha a ilusão de ter os dois para mim e de não precisar de escolher. Quem não escolhe é escolhido. O teu irmão perdeu-se com um rapaz que parecia ter saído de um filme do Visconti, Morte em Veneza. E eu fiquei contigo para mim sem que tu te apercebesses muito bem disso.
E tudo isto me parece tão distante, agora que tenho medo de escrever sobre nós e medo das letras que me possam sair dos dedos. Medo de perceber que se instalou um fim em nós. Nós, que nem chegamos a ser verdadeiramente um “nós”. Sempre que penso nisto sinto uma vontade incontrolável de chorar, vontade essa que procuro conter. Mas hoje acho que não faço bem em segurar as lágrimas. Elas afogam-me por dentro. Sufocam-me e destroem-me. Tenho medo da realidade que estas palavras conferem, mas não as posso evitar. Algum dia iria transbordar. Sempre temi transformar-me numa mulher piegas, dependente e, afinal, eis-me aqui de olhos inchados, lenço na mão, desolada, sem esperança e, ao mesmo tempo, cansada de desempenhar este papel. Já tentei rir-me de mim própria e cheguei até a consegui-lo. Tentei ser outra pessoa e, durante algum tempo, sai-me bem e senti-me confiante de que era capaz. Mas não. Vem aí a tormenta e eu tenho que passar por ela, não vou conseguir fugir-lhe.
As pessoas à minha volta, aquelas que considero amigas, dizem-me que estou presa por fios, eu sei, eu sei, tentei torná-los cordas grossas, não escorregadias, fortes, mas não consigo. Os fios vão cumprindo a sua função, mas sinto-me frágil, sempre quase a quebrar. Tento voar e eis que os fios se transformam em asas e eu percorro o mundo à espera de aterrar numa praia quente. Mas o voo é instável e estou sempre em permanente vigilância das asas, não vão elas converter-se de novo em fios e fim. Nunca aterro no lugar desejado e volto a ser quem sou, cambaleante, marioneta por uma eternidade. Raras vezes os fios endurecem, tornam-se aço e os meus olhos faíscam e ninguém me arranca do sítio. E eu sou muito eu, ou penso que sou. E assim vou passando pela vida, oscilando entre um eu forte, duro, difícil e um outro eu cujas pernas tremem, vacilam e que tem medo. Tanto medo.
Estou no momento crítico em que transito de um estar decidido e seguro de si para um estar perdido, às cegas e nem a lembrança da minha indecisão entre ti e o teu irmão, nem do carrossel que foi a nossa vida me lembra um padrão. Um padrão de comportamento do que sempre fui e sempre sou e serei. Aceitar-me-ei assim? Uns dias sim, outros não. E os outros? Amar-me-ão e odiar-me-ão. Morrerei feliz e com a certeza de que quero morrer, que mereço morrer para afinal descansar? Ou morrerei insegura, com medo, agarrada à vida? Ou morrerei na passagem de um estar para o outro? Uma coisa é certa: morrerei. Mas, às vezes, penso que morrerei de tanto ter vindo a morrer. Como se algo me empurrasse para a morte apesar de lutar todos os dias, lutar em cada palavra, em cada pessoa. Desiste-se.
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