A lésbica
Sempre soube que era homossexual e sentia-se bem com isso. A primeira vez que se apaixonou foi por uma professora que subtilmente lhe retribuíra o afecto e assim permitiu que ela vivesse o seu iniciático amor platónico. Aquele segredo fazia-lhe crescer a alma e era vê-la a devorar tudo quanto fosse teoria e ou ensaios sobre o amor homossexual; nada lhe escapava, nem as teorias mais absurdas das quais se haveria de rir, um dia. Entretanto o corpo começava a exigir e já não bastavam os olhares, os sorrisos, as palavras e então, oportunamente, direccionou a sua atenção para as colegas, algumas colegas, sobretudo as que mais a estimulavam intelectualmente e as que, de uma maneira ou de outra, deixavam vestígios das suas inclinações e preferências sexuais. Ao contrário de outras raparigas homossexuais, nunca lhe foi difícil arranjar uma companheira-namorada-amiga-mais-ou-menos-estável. Amou todo o tipo de mulheres: altas, baixas, frágeis, seguras, determinadas, indecisas, bonitas, feias, contudo, o pilar das relações que estabelecia era sempre ela, na sua calma, na sua bonomia, na sua ambição de ser exactamente o que era, lenta mas inexoravelmente determinava o caminho das relações, geralmente as mais adequadas para os contextos específicos. Amava inteligentemente e era tão jovem, tão pouco sabedora do sofrimento, tão sacrificada pela curiosidade que era impossibilitada de sedimentar o que intuía. Era admiração o sentimento mais habitualmente suscitado pela sua pessoa e ela sabia-o e gostava e alimentava isso com algum capricho, sem que, no entanto, vivesse disso, nem por sombras viveria de tão pouco e tão precário alimento. Corajosa, era a lésbica menos feminista que já existiu e, apesar de tudo, lutou por todos os seus direitos individual e colectivamente. Era serena na sua afirmação e foi assim que se conquistou e venceu.
Um dia sentiu que precisava de amar o corpo de um homem e não deixou de encarar a experiência com o seu espírito científico, medindo as sensações e as emoções e submetendo-as ao crivo das suas considerações. Nunca amou um homem, mas não deixou de sair humanizada da situação compreendendo melhor, aceitando melhor e libertando-se dela para poder amar outras pequenas coisas à sua volta: as crianças, as casas, outros filmes, outras poesias. Tornou-se mais mulher ao experienciar a radicalidade da diferença do homem, macho que ela não queria ser, nem fêmea de um macho que não precisou de ser. Sempre considerou a sua homossexualidade como um passo além, como se esta fosse um estádio superior em relação à heterossexualidade, como se estivesse para lá do corpo e para lá dos outros. Estes sentiam que não era fácil conhecê-la. O que ela era colidia com tudo aquilo para o qual estavam preparados, estimulados. Ela levava-os a sentir que tudo era possível e este era um estado de espírito insustentável.
Conheceu a dor em dois momentos distintos da sua existência e objectivada em perdas incomensuráveis: sob a forma de morte violenta (do pai) e sob a forma de uma ligação afectiva tumultuosa, conflituosa e até atravessada pela loucura, aqui e ali roçando o intolerável. A dor suscitada pela morte do pai foi sendo digerida ao longo do tempo, ora servindo de apanágio para outras dores, ora servindo de apoio para a memória descansar da continuidade da vida. A sua orfandade foi uma das raízes dos seus frutos, embora ela nunca se tivesse sentido uma filha, fosse de quem ou do que fosse. A dor do amor por um par foi bastante intelectualizada: tratava-se de sobreviver. O sofrimento não a aniquilou: não se protegeu, nem fugiu, nem envelheceu e, no entanto, escapa-nos das mãos. Está menos abordável, menos acessível, mais densa e ao mesmo tempo mais simpática, afável. Os anos colam-se-lhe à alma já diversas vezes desmontada, tornada a montar, não montável. Pronta para qualquer coisa que venha.
O seu próximo passo é uma incógnita. Mas a convicção que fica é a de que, vá para onde for, irá bem, deixará bem quem a acompanhar e à sua volta talvez viver seja mais respirável.
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