quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Grito na noite


O homem invisível

No momento em que sai do centro de emprego da sua área de residência atira para o chão o papel que lhe tinha sido entregue há apenas uns minutos. Não compreende muito bem por que razão o faz. O sentimento de inutilidade que o acompanha desde que ouviu “lamento, mas a empresa está a passar por grandes dificuldades e, numa lógica de redução de custos, teremos de prescindir dos seus serviços, insubstituíveis é certo, mas prescindíveis…” está certamente envolvido neste acto involuntário que consistiu em livrar-se das informações escritas que tinha recebido nesse antro de desencorajamento institucionalizado que é o centro de emprego.
Quando foi despedido pensou positivamente: “os momentos de crise são momentos de crescimento interior; isto está a acontecer para que eu seja obrigado a mudar a minha vida; vou aprender a dar valor a outros aspectos da existência; na verdade este emprego nunca foi aquilo que esperava: sempre estive além do que me exigiam; amanhã recomeço: vou falar com amigos que me podem ajudar e que sempre me estimaram e apreciaram as minhas qualidades produtivas; vou responder a anúncios com cartas personalizadíssimas e um curriculum vitae irrepreensível; vou estudar as possibilidades de criar o meu próprio posto de trabalho e, quem sabe, até uma empresa...”
Mas seis meses volvidos, a indemnização que a empresa não pagou, o subsídio de desemprego que tarda, várias prestações do carro, da casa e do cartão de crédito em atraso, o olhar de desprezo da mulher, que sai de manhã a correr com os filhos, a sua figura em pijama o dia todo, o afastamento dos amigos, as respostas a anúncios sem retorno e o optimismo esmorece. Instala-se, primeiro, a doença do não, a depressão: a vontade de não sair da cama, de não comer, não tomar banho, não se vestir, não estar com ninguém, não se esforçar, não fazer, não ser, não viver. Depois a família impõe o diagnóstico e a cura e, então, instala-se, em segundo lugar, e de forma perigosamente insidiosa e irreversível, a apatia, a doença do nada: nada sentir; a anestesia provocada por fármacos prescritos na sequência do sofrimento; nada esperar; a desistência intelectual desfasada da desistência física ainda tão distante; nada a concretizar; nenhuma palavra, nenhum telefonema, nenhuma pessoa surgirão no horizonte.
À sua volta as pessoas preocupam-se: a mulher preocupa-se com as contas e com os filhos, como será daqui em diante; a família alargada preocupa-se com a possibilidade de ter que ajudar sabe-se lá como; os amigos preocupam-se com o que possa acontecer a eles próprios, isto acontece a qualquer um, ninguém está livre; uma ou outra pessoa preocupa-se genuinamente com aquilo em que ele se possa tornar. Algumas destas pessoas encontram-se ocasionalmente e trocam impressões sobre o assunto e há qualquer coisa de saudade neste facto: recordam o que ele foi e o que era e lamentam o que agora é e o que o motivou. Carpidas as dores, enumeram soluções e estas vão desde o continuar a lutar, o emigrar, o ter uma ideia, até ao internamento, à reforma antecipada, à incapacidade temporária. Abrem-se perspectivas e fecham-se portas e oportunidades.
Pode dizer-se que ele está de certa forma inacessível. Quando os outros conseguem chegar perto dele, ele acolhe-os com um sorriso forçado e palavras ensaiadas. Parece ouvi-los e chega a afirmar que vai reflectir sobre tudo o que lhe dizem e, no entanto, esquece-os rapidamente quando partem e só não esquece o que lhe dizem porque nem o chegou a ouvir. Os outros têm a estranha sensação de distanciamento e ausência na sua presença. Quando saem de ao pé dele não sentem o altruísmo que se segue aos actos caridosos e generosos. Não sabem o que pensar ou sentir, ficam confusos. Não encontraram um homem desesperado, nem desfeito, nem feito vítima ou desgraçado. Não se deparam com um desempregado à procura dum emprego, cujas energias e atenções estão focalizadas nesse aspecto. Vislumbram alguém que se parece vagamente com outro alguém que em tempos conheceram; alguém que deixou de estar ali para eles e isso desarma-os.
A vida à sua volta desenrola-se sem que ele interfira, sem que ele faça diferença. Perdeu o poder e a único modo que encontrou de sobreviver consistiu em se tornar invisível. Ninguém tem que se incomodar com a sua presença porque ninguém o vê. Sabem que ele não morreu, não desapareceu pois não tem meios para isso, mas não têm que sentir o constrangimento de o ver sem nada para lhe dizer ou sem nada para partilhar.
Na sua invisibilidade o homem recuperou alguma liberdade e autonomia, sobretudo quando se tornou invisível para si mesmo.

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