A lição
Depois de ter rasgado todos os papéis que lhe pareciam inúteis, sentiu-se leve e estranhou essa sensação que há tanto tempo não experimentava! Respirou fundo e resolveu sair para passear junto ao mar. Assim fez.
Há cerca de quatro anos abandonara o seu companheiro de mais de uma década para viver com um outro homem por quem se apaixonara terrivelmente. Hoje ela supõe que era doente por ele e, de facto, enquanto essa relação durou ela sentiu-se sempre doente. De resto, ele dizia-lhe que ela estava sempre doente e ela respondia que sim, que estava doente dele, por ele e que devia ser normal esse estado quando alguém se apaixona como ela estava apaixonada por ele.
Ele adorava a paixão que suscitava nela e alimentava-a cuidadosamente porque sabia que ninguém o amaria mais do que aquilo, mais do que ela. Aquela situação era seguramente o pico da sua existência, no que dizia respeito ao amor. Não que ele a amasse muito, mas isso era normal nele. Nunca amara muito, as paixões desvairadas sempre lhe pareceram histerias femininas, coisa de mulheres desocupadas, de filmes. Achava que não era um homem romântico e nunca sentira falta de o ser. Tivera mulheres suficientes para se considerar um homem com sorte e soubera tirar prazer das relações que mantivera ao longo do tempo. Quando a conheceu surpreendeu-se com a fúria dos sentimentos dela, ela amava-o com raiva mas também com devoção, adoração e muita submissão, coisa que o excitara verdadeiramente. Sentiu-se, pela primeira vez, dono de uma mulher que lhe dizia vezes sem conta “faz de mim o que quiseres”. E ele fazia e gostava do que fazia e gostava que ela gostasse de qualquer coisa que ele lhe fizesse, mesmo que isso implicasse dor física ou moral.
O amor dela permitira que ele se conhecesse melhor, bastante melhor. Descobrira a seu respeito, por exemplo, que sentia prazer em fazê-la sofrer. Por isso, propositadamente, passava dias a fio sem atender os seus telefonemas, sem responder aos seus recados nem mensagens e sem aparecer aos encontros marcados. Ela ficava desesperada e, ao fim de alguns dias, amava-o mais do que nunca, aparecia-lhe no local de trabalho sem aviso, fechava-se com ele no gabinete e suplicava-lhe que não a deixasse, que faria qualquer coisa por ele, que não vivia sem ele, que ele nunca encontraria ninguém que o amasse como ela, que… Ele sorria intimamente. Adorava aquele espectáculo. Ela sabia aquele papel como ninguém. Naqueles momentos, desejava-a imenso e fazia amor com ela como sentia que ela gostava. E este era o ponto alto da relação deles: o prazer dela viciara-o.
Mas agora, ela estava a passear junto ao mar, depois de ter rasgado muitos papéis relacionados com o passado e esse despojamento provocava-lhe uma sensação de bem-estar quente. Passear junto ao mar era, por si só, um prazer enorme. A tarde estava a acabar e o tempo piorava a olhos vistos. O céu tinha aquela cor de explosão que antecede as tempestades. As pessoas refugiavam-se nas casas ou nos carros e só meia dúzia se atrevia a andar ali com aquele tempo. E, de repente, começou a chover tanto que imediatamente ficou encharcada até aos ossos. Inicialmente, pensou em correr para se proteger. Mas rapidamente começaram a surgir aquelas dúvidas sem resposta que sempre a deixavam indecisa e paralisada: fugir para onde? Onde se sentiria ela realmente segura? Esse lugar existiria? A água da chuva era uma ameaça maior do que aquela que pairou sobre a sua cabeça durante quatro anos na sua relação com aquele homem? Seria mais grave estar encharcada por fora ou chorar para dentro, apodrecendo de humilhação?
Continuou a andar junto ao mar: este adquiria um comportamento cada vez mais ameaçador. Alguns carros paravam como que indagando se ela precisava de ajuda ou, simplesmente, porque é que ela estava ali. Ela caminhava rapidamente, com fúria, como que lutando com o vento e a chuva, vencendo cada passo e prosseguindo. Não sei em que momento sentiu que a caminhada não teria fim, mas a partir dessa hora indetectável, dissolveu-se no mar.
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