Do lado de fora do rio
A primeira decisão que tomei quando recebi a notícia da tua morte foi a de registar tudo o que se passasse em seguida que estivesse relacionado com ela. Assim, peguei na minha (mini) câmara de filmar e dirigi-me para tua casa. A tua mãe abriu-me a porta com os olhos vermelhos e o rosto marcado pela dor e esta foi a primeira imagem que gravei da tua morte. Ela ficou surpreendida e incomodada, mas abraçou-me e resignou-se àquilo que considerou ser a “minha maneira” de reagir ao sofrimento. Pedi-lhe para ir ao teu quarto, pedido a que acedeu com agrado, certamente reconfortada pela normalidade da ideia de eu poder querer guardar algo teu. Tive tempo mais do que suficiente para filmar a tua cama (tantas vezes nossa), o detalhe da falta de madeira junto à cabeceira, os teus CDs copiados da Internet, o teclado do teu computador cheio de migalhas de bolachas belgas, a tua roupa amontoada na cadeira, os restos dos teus cigarros no cinzeiro e algumas das tuas fotografias, as que estavam expostas. Não abri gavetas nem armários. Apenas me interessava o que era imediatamente visível.
Depois de me ter despedido de alguns familiares teus, manifestamente não filmáveis, entrei no carro e conduzi até à ponte D Luís, que atravessei até ao lado de lá, até Gaia, e aí procurei o teu carro. Ele havia sido ali deixado por ti, com uma nota de despedida em que procuravas tranquilizar os que te eram queridos, inocentando-os de qualquer responsabilidade na tua decisão de não continuar a viver. Justificavas essa escolha com a tua inabilidade para viver. Esse bilhete estava nas mãos da polícia judiciária, por isso, quando cheguei perto do teu carro, limitei-me a filmá-lo por fora, os pneus já quase vazios, a porta do lado esquerdo ligeiramente amolgada, e o pó nos vidros dificultando a filmagem ao interior do carro, embora não totalmente: havia um casaco azul-escuro caído entre os bancos de trás e os da frente e uns óculos de sol esquecidos em cima de um jornal no tablier.
Em seguida, caminhei ao longo da ponte, pelo lado esquerdo, no sentido Sul-Norte, procurando captar com a câmara os teus últimos passos e depois a queda, tal como eu os imaginava. Esta foi filmada inicialmente com a câmara desfocada até atingir a água do rio e se tornar de uma nitidez dourada. Ninguém sabe de onde saltaste, se saltaste ou simplesmente caíste. Mas imagino-te ébrio, desolado com a existência como só tu: quem aguenta um pai alcoólico e alucinado, uma mãe amargurada e um irmão bem sucedido, tudo ao mesmo tempo? Tu não. Imagino-te a beberes até caíres, depois de teres pensado na forma de fazer aquilo que te andava a apetecer fazer há tanto tempo. Imagino-te a pagares uma última rodada aos amigos e a atribuíres um sentido solene aos mais triviais desabafos destas circunstâncias. E consigo ainda ver cada ruga do teu rosto enquanto mudava o tempo e se aproximava a hora.
O portátil toca. O teu irmão pede-me que acompanhe a tua mãe ao instituto de medicina legal, tendo em vista o reconhecimento do teu corpo. Comento com o teu irmão que poderá ser muito duro para a tua mãe. Ele responde “ela faz questão” e desliga o telefone. Sorrio e lembro-me do quanto te pareces com ela. Nessa noite sonho com as imagens que te roubei e de manhã acordo sobressaltada com receio de estar atrasada. Mas nem por isso, apesar de ter chegado ao instituto de medicina legal e já lá estar a tua mãe, o teu irmão e a namorada. Nervosos, tristes. O teu irmão olha para a tua mãe e pede-lhe para não entrar; ela exalta-se e afirma “tenho que ir ver, com os meus próprios olhos”. Eu e ela encaminhamo-nos para a porta lateral do instituto, batemos à porta e aparece um homem muito mal-encarado que nos pergunta o que queremos. Explicamos o motivo da nossa presença, identificamo-nos e eu pego na minha mini câmara e começo a filmar. Filmo o homem que começa por calçar lentamente umas luvas. Em seguida, pergunta a um colega “onde está aquele que foi encontrado na Afurada”? “No quinze”, responde o colega e eu filmo o gavetão número 15 que se situa na parte superior do armário de gavetões, à nossa frente. O homem mal-encarado, cuja boca filmo intensamente, abre o gavetão e surge então o teu corpo, ainda vestido com a roupa do último dia em que foste visto, embora toda esverdeada, e o teu rosto e mãos inchados. A primeira imagem que quis reter de ti foram as tuas mãos pousadas cuidadosamente sobre o peito, depois os olhos fechados e voltei a câmara para a tua mãe. Ela dizia “é ele. O meu filho”. Como se não o soubesse. Como se fosse outra vez notícia. Voltei de novo a câmara para o homem carrancudo que afirmava “está inchado e verde por ter estado muitos dias no rio… e teve sorte… a maré desceu e ele deu à costa… podia ter acontecido como com os de Entre-os-Rios. Nunca mais se viram…” Também acho que tiveste sorte por teres dado à costa. Sempre foste um homem de sorte; até nisto ela é precisa. Todos precisávamos dum cadáver para chorar, fosse de que cor fosse. Agora terás um funeral, belíssimo na sua fatalidade. Ainda gravei o preenchimento de toda a formalidade, na secretaria. Os dados foram recolhidos por uma assistente social muito carinhosa que interpelava a tua mãe já muito distante no seu sofrimento, impenetrável.
Saí com a tua família do instituto perto da hora do almoço. Ninguém conseguia comer e por isso distribuímos tarefas: o teu irmão encarregar-se-ía de avisar o resto da família e amigos, bem como de tratar das questões religiosas; a tua mãe iria escolher a roupa e trazê-la para que te vestissem decentemente para o velório e eu procuraria o teu pai. Fui encontrá-lo no seu estado habitual, completamente alcoolizado, no restaurante do costume, desta vez no centro das atenções por tua causa. Filmei-o sentado de costas para a porta do restaurante, depois aproximei-me lentamente e passei a filmar o rosto do amigo sentado em frente dele, totalmente absorvido pela desgraça do teu pai. Acabou por lhe fazer notar a minha presença. O teu pai rodou a cabeça na minha direcção e encolheu os ombros em sinal de total desinteresse pela minha pessoa ou pelo que ela pudesse significar ali, naquele momento. Cumprimentei-o e pedi-lhe que viesse para casa juntar-se ao resto das pessoas que queriam partilhar aquele momento. Ele soltou uma gargalhada, olhou-me com um desprezo enorme e avisou-me “se me filmas uma vez mais que seja, vais engolir essa merda”. Chamei o empregado “a conta, por favor” e usei mais uma vez o velho truque “conte-me lá aquele episódio da guerra… aquele em que teve que fazer uma transfusão de sangue directa, no meio do mato, para salvar o seu amigo…” Não resistiu, como sempre, e lá começou a relatar a emboscada, os helicópteros que só podiam voltar de manhã, o pé do colega nas mãos do inimigo, o enfermeiro que não controlou os esfíncteres, o pânico e... chegamos a casa. A tua empregada já tinha um café forte pronto e a roupa para depois do banho. A tua mãe informou-nos de que o teu corpo estava já em câmara ardente na igreja da freguesia. Onde tinhas sido baptizado, onde tinhas realizado a primeira comunhão e a solene, onde ela vai todas as semanas pedir por todos, onde o padre te recorda sem mácula. Lá arrastei de novo o teu pai comigo, ainda naquele espírito missionário, em Moçambique, a salvar umas vidas atrás das outras e a perder a dele.
A capela onde depositaram o teu corpo era francamente pequena para tanta gente. Já deviam saber que uma vida ceifada na flor da idade atrai muita gente: a família e os amigos ainda estão todos vivos e ninguém se conforma com uma morte que não seja o corolário de uma doença ou de um acidente. O caixão é lindo, de mogno, forrado a cetim e tu estás de fato e maquilhado, fizeram um bom trabalho, não pareces o mesmo que vi na morgue. Agrada-me que estejas com bom aspecto, torna a tua opção mais credível. À entrada da capela existe uma cómoda onde a tua mãe colocou uma fotografia tua, muito mais novo, ainda sem aquele ar cínico que foste adquirindo com o tempo. E um livro de condolências por estrear. Filmei o livro despido e o Cristo na cruz que compunha o pequeno altar em tua homenagem. Algumas das pessoas que iam chegando beijavam a cruz, como se fosse Páscoa. Também filmei esse gesto. Repetidas vezes. E os teus sapatos! Acreditas que te calçaram uns sapatos como nunca usarias na vida? Pretos e com cordões! Filmei os sapatos de todos os ângulos possíveis tentando encontrar alguma familiaridade…em vão. A maior parte das pessoas concentrou-se fora da capela falando baixinho, conjecturando; a tua mãe sentou-se perto de ti, olhando-te com uma saudade que me fez estremecer. Penso que foi exactamente nesse momento que a ideia começou a tomar forma dentro da minha cabeça. Por uns momentos saí da capela e fui apanhar ar, como se a ideia fosse tão grande que não coubesse dentro de mim, não me deixasse espaço para respirar. Pensei que estava a enlouquecer, e estava, mas ainda não sabia e talvez nunca o viesse a saber. Resolvi voltar a entrar na capela e tentar apanhar de novo aquele olhar da tua mãe sobre ti. Mas quando regressei as pessoas estavam todas a sair da capela. A tua mãe procurou-me, aflita, e sussurrou-me “não se podia com o cheiro, tiveram que fechar o caixão…foram muitos dias, eu disse-lhes que sim, que fechassem”; ela olhava para mim em tom de súplica, precisava de aprovação – eu dei-lha, “fez muito bem”. Eu e ela, de mão dada, de novo dentro da capela, eu cheia da minha ideia respirava com dificuldade, ela pensava que eu estava comovida e apertava-me a mão. Dentro da capela limitei-me a filmar mais isto: a desolação duma mãe sozinha, cabisbaixa, junto do caixão fechado do filho morto. A tua mãe e o teu irmão ficaram toda a noite na capela, sentados perto de ti. O teu pai não aguentou mais do que uma hora e voltou para o restaurante, à noite, bar. Eu fiquei apenas para filmar a tua mãe, mas limitei-me a filmar os ponteiros do relógio enquanto se moviam, depois fui dormir.
O dia do teu funeral nasceu esplendoroso: sol quente e céu azul. O cemitério escolhido é muito bonito com as suas avenidas largas enfeitadas por árvores e as suas campas muito limpas e floridas. Esteticamente, o teu funeral foi o ponto alto do acontecimento que é a tua morte. E eu e a minha mini câmara lá estivemos a registar todos os momentos, apesar dos olhares censuradores que muitos me lançavam. Maioritariamente vestidas de preto, as pessoas percorreram o cemitério em passo lento, amontoadas atrás dos homens que transportavam o teu corpo dentro do caixão, agora selado, contrastando com a cor das flores, das árvores, do dia. A tua campa fica num ponto alto do cemitério, muito bem localizada para quem a visita e para quem nela habita. Chegados a ela, todos se dispuseram à sua volta, num círculo irregular. A cova estava aberta e foi junto dela que pousaram o teu imponente caixão e se prestou uma última homenagem, orientada pelo padre, mais uma vez, que te viu crescer. No momento de descer o caixão à terra, à última morada, ninguém teve o mau gosto de pedir que fosse aberto (todos se lembravam do cheiro nauseabundo) e apenas se ouviu a tua mãe chorar e dizer “Não!” repetidas vezes e se viu o teu pai a ampará-la como nunca o fez. Foi preciso morreres para que ela precisasse de se apoiar nele. Ele, que sempre se apoiou nela, durante toda a vida. O teu irmão não conseguiu evitar que as lágrimas lhe molhassem o rosto. E os teus tios confundidos, os teus primos revoltados, a tua avó mais velha do que nunca, os teus amigos em atitude de espanto compunham um cenário único; previsível, mas único. E a minha câmara apanhou-os enquanto esmagavam as pontas dos cigarros com os pés, enquanto tentavam disfarçar a emoção, enquanto cumpriam obrigações e laços, enquanto ombreavam com a morte de soslaio, enquanto fraquejavam. Foi um funeral rápido, o teu pai precisava de ir beber e não houve muitas conversas de circunstância no fim, não se prestava a isso. Eu fiquei depois de todos partirem. Agora era só eu e tu e os coveiros que se apressavam a tapar o caixão com terra que lançavam para cima dele. Precisava de amadurecer a minha ideia. Estava cansada de ter estado tanto tempo a filmar debaixo daquele calor. Perguntei aos coveiros quando é que a tua campa ficava pronta. “Daqui a uns dias”, responderam.
“Daqui a uns dias” é uma informação vaga que cria muitas ilusões na comunicação, nomeadamente, cria em mim a ideia de que teria uns dias para pôr em prática a minha ideia. Por isso, resolvi avançar no próprio dia do funeral, melhor, na noite do dia do funeral. Muni-me de um tripé, da minha inseparável câmara, duma lanterna, dos meus headphones, duma pá, uma pequena caixa de ferramentas e duas cervejas e conduzi até à parte de trás do cemitério que tem duas entradas secundárias cujo gradeamento é mais fácil de ultrapassar do que o do portão principal. Além disso, a rua destas entradas secundárias é muito mais sossegada, corro um risco menor de ser vista e confundida com um desses góticos excêntricos que adoram cemitérios, mortos e coisas afins. Dirigi-me sem dificuldade para a tua campa, apesar do peso dos objectos que levava comigo. Uma vez lá chegada acendi a lanterna apenas para me orientar, depois apaguei-a para poupar a bateria. Liguei os headphones com música de Britten (excerto de Peter Grimes – cena 1 do segundo acto “Acredita em mim… Deus tenha piedade de mim”) e comecei logo a cavar, tentando desfazer o mais depressa possível o trabalho dos coveiros. Demorei bastante tempo e tive que parar algumas vezes para beber e descansar. Finalmente, estava já a ouvir Bárbara Hendrix cantar uma ária (cantilena) das Bachianas Brasileiras do Villa-Lobos, sinto algo duro e tenho a certeza de que consegui chegar ao teu caixão. Respiro fundo, sorrio e sinto que vou concretizar o meu plano. Quando me deparo com o teu mogno, tiro a chave de fendas do bolso e começo a desaparafusar as tuas fechaduras cromadas. Parecia mais simples do que realmente é. Por fim, abro a tampa e, de novo, acendo a lanterna, preparo o tripé, com a câmara em cima, oriento-a na tua direcção e REC, está a filmar. Filma a renda que te cobre e que afasto com cuidado. Subitamente, sinto aquele cheiro insuportável: tinha-o esquecido. Carrego em PAUSE na câmara. Páro um pouco, volto a beber um gole de cerveja, ponho Callas a cantar “O mio babbino caro” no headphone, respiro fundo e volto ao filme. Ali estás todo inteiro, tal como sempre te conheci. REC de novo. Começo por te acariciar o rosto e as mãos. Reconheceria as tuas mãos entre mil. Têm um recorte tão invulgar, são-me excessivamente familiares. O toque é estranho, mas bom, só o cheiro é que estraga tudo. Tenho que parar mais uma vez. PAUSE. Sinto-me enjoada. Mas tenho que fazer o que tenho que fazer; tenho que fazer o que quero fazer. REC. Deito-me na terra húmida, aproximo o meu rosto do teu e começo a beijar-te a boca fria e inerte. Sabe-me bem. Mexo no teu cabelo, puxo-te o cabelo, murmuro-te coisas indecentes, coisas sem sentido, barbaridades, o que interessa é o tom. A lanterna começa a falhar, apre! Tenho que me despachar. Sento-me ao teu lado e declamo-te o poema do Torga, Lápide e, sem dar a tempo a mim própria de pensar mais, abro-te o fecho das calças, puxo o teu sexo murcho para fora, hesito um momento, engulo em seco e corto-o com uma pequena navalha. Não sangra, não oferece resistência, deixa-se mutilar, é meu. Qual geisha Sada de Oshima. Embrulho-o num saco de plástico, depois noutro e guardo-o no bolso do meu casaco. Volto a beijar-te a boca, desta vez com a língua, tapo-te, fecho-te, aparafuso-te e repito os gestos dos coveiros. Há muito que a câmara deixou de filmar por falta de bateria. O mesmo se passou com a lanterna. O meu trabalho carece de perfeição, estou exausta e com muita vontade de ir embora. Recolho as minhas ferramentas e, sem olhar para trás, ponho-me em fuga. Na minha cabeça martelam as palavras de Torga “Quando eu morrer e tu ficares sozinha, / longe do bafo quente do meu corpo, / tu, a quem eu amei, sei lá por vingança/ de Deus, / nessa hora, / olha serenamente a nossa história inútil / e chora…/ Rega de pura mágoa a flor do “nunca mais”/ (…) e depois morde o chão seivado e semeado / do místico perfume do meu sexo / sepultado…”
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