sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Grito na noite


Vítima

“E é tudo. Foram as últimas palavras. Aquelas que remataram os acontecimentos daquele dia de sol, há muito tempo. Estávamos os dois em casa. Havia uma tensão terrível no ar. Eu existia e isso, naquele dia, irritava-o insuportavelmente. Começou por me apertar o pescoço, várias vezes. Parava apenas por segundos com o único propósito de prolongar a minha agonia. Depois principiaram os murros na cabeça, de forma aleatória, onde calhava, na nuca, nos olhos, nos ouvidos, na boca, na testa. Já quase inconsciente, lembro-me de ter caído no chão; aliás, do que me lembro mesmo é de estar no chão e de chegar a vez dos pontapés e de ter pensado “desta vez não vou resistir”. Pelas marcas posteriormente observadas, os pontapés atingiram quase o corpo todo: as costas, as pernas, a cabeça, o estômago, o sexo, as mãos. E lembro-me do sangue à minha volta. Ele era já muitos. Era todos os outros que, durante a minha vida, me tinham agredido, embora nenhum deles com tanta frequência e violência. Geralmente, cada um tem um padrão de agressão: uns preferem os murros, outros os pontapés, outros as estaladas, outros usam utensílios como cintos, paus, jarras, cinzeiros e outros apertam, beliscam, sufocam. Enquanto o fazem têm a sensação de poder que não conseguem obter de outra forma. Alguns têm prazer nisso, outros sofrem com isso mas não conseguem deixar de o fazer. São ultrapassados pela necessidade de agredir. Fui muitas vezes vítima e, no entanto, nunca interiorizei esse estatuto. Eu sabia quem eles eram, do que eram capazes ou no que se podiam tornar. Não estava enganada, apenas desprotegida nessa minha consciência do perigo. O conhecimento que temos das coisas nem sempre nos abriga nos momentos mais difíceis. Por outro lado, sempre acreditei na palavra, no diálogo, na verbalização do mal-estar que pode levar alguém a agredir um outro significativo. Acreditava que o amor impedia as pessoas de atitudes conotadas com o seu contrário, como o ódio, a raiva, o desamor. De cada vez que isto acontecia pensava que era a última e arranjava maneira de me convencer que tinha sido única. Nunca deixei um homem por ele me ter batido ou espancado. Achava que não era razão suficiente, ou que não era uma verdadeira razão para o fazer. Os ferimentos que me eram infligidos não eram fruto da razão. Cheguei a convencer-me da minha responsabilidade na violência que suscitava nos meus pares, ou na minha escolha de pares violentos. Sei que não gostava de ser batida como um saco de boxe e que sentia medo quando me apercebia que esses momentos se aproximavam e tentava fugir e que havia sempre uma teia que me invalidava a fuga. Sabia que ninguém me poderia valer, ninguém me quereria valer, ninguém chegaria para acabar com aquilo. Só o cansaço do agressor, a falta de forças para continuar e o atenuar da raiva punham fim à situação. Nem sempre precisava de ir ao hospital. Às vezes bastava ficar na cama sem me mexer durante muitos dias e as dores iam desaparecendo, excepto se entretanto voltasse a ser alvo de violência física, o que era raro. Os agressores preferem as vítimas sãs. Sentem menos culpa.
Quando tinha de ir ao hospital era um inferno. Os olhares dos outros e a pena. As perguntas dos médicos e dos agentes da autoridade. Os exames. Os tratamentos. Às vezes os internamentos por causa das hemorragias internas e dos traumatismos cranianos. Os enfermeiros curiosos. Era o pior. Nessas alturas não queria que olhassem para mim, que me vissem, que pensassem sobre mim, que extrapolassem. Queria ser invisível e não conseguia. As feridas falavam por mim, chamavam a atenção, e eu morria tanto por dentro delas, de vergonha e culpa por elas serem minhas, serem eu. Até que o conheci e este último não me deixava ir ao hospital, o que muito lhe agradecia. Ele era brutal: a sua violência era reconhecida e temida por todos aqueles que o conheciam. E, até eu, quando nos encontrámos, tive a noção de que era o fim de uma linha, de um caminho. Durante muito tempo não me tocou embora discutíssemos com alguma regularidade. Um dia, saltou-lhe a tampa e o que lá de dentro saiu era negro, pesado, denso e eu só queria entender aquele estar. Não o entenderia. A pancadaria tornou-se gratuita, bastava não haver futebol na televisão. E um dia, de sol, como já disse, acabaram-se as palavras, os olhares, a esperança em dias e noites melhores, e de dentro dele veio a morte. Penso que ele se apercebeu que eu morreria nessa noite e mesmo assim não parou. Pensou nele, na sua negritude, na sua raiva contra tudo e todos, no seu ódio à existência, e eu fui a vítima perfeita. Calada, enrolada em mim num canto da sala tentando proteger-me, frágil, fácil de agredir, disponível para morrer. Quando a polícia chegou eu estava cadáver há algumas horas e estava só. Vi-me ser levada para fora de uma casa que não identifiquei e adormeci para sempre, num sono sem sonhos”.

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