Felicidade
Nunca soube se FELICIDADE era apenas o seu nome de guerra ou também o de baptismo, se baptismo tinha havido.
Sei apenas que, de dia, Felicidade era a mais pacata e solitária das habitantes do bairro. Vestia a sua bata gasta com botões à frente e andava para cima e para baixo a fazer as suas coisas, digamos, as suas compras, aquelas que o seu parco rendimento permitia. Conversava afavelmente com as vizinhas a quem se lamentava da vida e corria os cafés da zona pedindo que dessem comida ao filho; comida, sim, ela pagaria no fim do mês; dinheiro, não. Todos conheciam Felicidade e o filho, nado e criado no bairro, toxicodependente há anos e, agora, mais recentemente, infectado pelo vírus da sida. Tinha estado internado mas acabara de sair do hospital e voltara a comer nos cafés do bairro.
Sei ainda que, de noite, Felicidade se transformava. Puxava para cima os poucos cabelos que lhe restavam e a arte do penteado era tal que parecia ter uma farta cabeleira, ninguém diria. Vestia uma saia curta muito justa, geralmente escura, umas meias pretas rendadas e uma blusa garrida. Calçava um par de sapatos com tacão alto e estava pronta para trabalhar. Habitualmente, os homens procuravam-na na parte de trás da Igreja e iam com ela para a pensão de sempre. Tinha clientes de há muitos anos, que tinham envelhecido com ela e por isso a continuavam a procurar. De vez em quando aparecia um cliente novo, mas cada vez era mais raro.
Felicidade vivia com um homem muito mais novo que embrulhava jornais num diário importante da cidade. Este homem amava Felicidade e o dinheiro que ela ganhava, mas suportava mal a vida dela e, talvez por isso, batia-lhe ferozmente. “Ele trata-me muito mal, mas eu gosto dele, ele é o meu homem”, dizia ela a quem lhe fazia o reparo das marcas. Muitas vezes Felicidade ia trabalhar tão pisada que qualquer toque era uma chicotada, mas não podia deixar de o fazer e, era verdade, não queria deixar de o fazer. Gostava da sua profissão.
Felicidade tinha vivido toda a sua vida naquele bairro e começara a prostitui-se aos treze anos quando percebeu que era a única forma de ser útil contribuindo com o dinheiro que ganhava para o sustento da casa, se casa se pode chamar a um aglomerado familiar que apenas partilha a miséria. Teve um único filho que não amou suficientemente. Contudo, nunca lhe negou ajuda, nem nos momentos mais improváveis, nem quando nada tinha para lhe dar, nem quando “dar” era sinónimo de outra coisa qualquer. E, nessas alturas, as vizinhas ouviam-lhe: “Oh, filho! Não tenho…” E o porta-moedas a abrir-se uma vez e outra e havia sempre uma moeda para ele.
Era frequente encontrar Felicidade a chorar à saída de um dos cafés onde acabara de pagar a conta da comida do filho e ficara sem dinheiro. Sabia que exploravam a situação, mas não tinha forma de a controlar. E era vulgar encontrar Felicidade a rir, pendurada no braço do seu homem, gaiteira, encaminhando-se para um passeio pelas redondezas.
Felicidade trabalhou até à véspera da sua morte. Nessa noite sentiu-se mais cansada do que o habitual e ficou contente quando chegou a hora de ir para casa enroscar-se no seu homem. Aí chegada deitou-se, beijou a fotografia do filho pousada ao lado da cama, abraçou o companheiro que dormia no torpor do álcool, aconchegou os lençóis e sentiu-se feliz. Não voltou a acordar. Morreu aos sessenta anos.
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