quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Grito 15

Não quero escrever como se fosse impotente; como se o mundo fosse acabar; como se as pessoas morressem; como se as flores murchassem; como se as despedidas doessem; como se o amor acabasse; como se todos sofressem; como se as crianças se magoassem; como se fosse possível ser infeliz; como se os campos ardessem; como se a fome matasse; e a sede secasse; como se tudo mudasse quando não podia.
Nem quero escrever como se fosse má; como se odiasse profundamente; como se desejasse o pior; como se batesse, agredisse, empurrasse; como se matasse; como se gozasse com a dor; como se gostasse do sofrimento dos outros; como se fracturasse; como se encobrisse o mal; como se mentisse; como se pecasse; como se soubesse; como se não soubesse; como se não estivesse onde todos estão.
Nem quero escrever como se não fosse eu; disfarçada, pintada, escondida; como se fosse outra; como se não fosse; como se sendo não quisesse ser; como se fingisse, mentisse, ludibriasse; como se encenasse, representasse; como se imitasse, copiasse; como se roubasse, engolisse os outros; como se derrapasse; como se negasse, ignorasse, desdenhasse; como se não falasse nem escrevesse nem pensasse.
Não quero escrever como se fosse doente, defeituosa, amputada, desfeita, refeita, voltada a fazer, incapaz, infértil, ignorante, egocêntrica, infeliz, incrédula, pessimista, qual velha do Restelo, derrotada, vencida, esquecida, ignorada, evitada, enjoada, enojada, repelente, feia, envelhecida, suja, descuidada, desinteressada, desinteressante, gorda.
Não quero escrever como se acreditasse que amanhã será um dia melhor, nem como se confiasse nos outros, nem como se houvesse uma solução para tudo, nem como se a ecologia fosse a solução dos pobres, nem como se a economia pudesse ser a salvação dos ricos, nem como se a ciência nos tornasse imortais, nem como se a literatura nos curasse o vazio, nem como se a saúde fosse um bem.
Nem quero escrever sendo um cadáver ambulante, com palavras velhas para dizer, com pensamentos antigos, fora de uso, carregando não sei que vida, que dor, morrendo com as palavras presas nas mãos, recusando-me; nem como uma morta viva afogada em memórias, cansada, cansada, pesada.
Não quero escrever…

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