quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Grito 14

Mulher em Mudança

Sou uma mulher em mudança. Poderão dizer que me limito a adoecer e que adoecer é uma forma de envelhecer e de viver. Talvez. Mas apenas me sinto a mudar. Ouço vozes que me dizem coisas maravilhosas e não me fazem sofrer: não são reais, é certo, mas não doem como aquelas que o são. São várias vozes diferentes e fazem-me companhia onde antes estava só como um cão. Não me digam para tomar medicamentos que m’as levem, não os tomarei. Vejo coisas impossíveis de serem vistas, eu sei. Mas são de uma beleza paralisante. Pura fruição estética. Quero gravar estas imagens dentro de mim, guardá-las no fundo da memória antes que alguém se lembre de m’as roubar. Não me digam para tomar medicamentos que m’as levem, não os tomarei. Tenho novos sentimentos, novos para mim: ódio, raiva, revolta. Protegem-me de quem me quer fazer mal e quase todos me querem fazer mal; estou sempre atenta e pronta a atacar quem ousar aproximar-se demasiado: não estou aqui para ninguém. Sou uma mulher em mudança. Vejo coisas diferentes, ouço coisas diferentes e sinto coisas diferentes. Não me digam para tomar medicamentos que m’as levem, não os tomarei. O meu corpo também mudou e eu sinto os meus órgãos a mudarem de lugar dentro de mim e as suas funções a alteraram-se de uma forma mágica: acho que penso com os pulmões e respiro com o coração e sinto dor ou prazer no estômago. Ainda não sei onde está o meu sexo. Tantas coisas diferentes dentro desta mulher em mudança. Não me digam para tomar medicamentos que m’as levem, não os tomarei. Não quer dizer que a minha vida tenha ficado de pernas para o ar. Não quer dizer que não compreenda quem era antes e o que sou agora. Não quer dizer que não fosse feliz. Não quer dizer nada. Apenas que sou uma mulher em mudança: de um estado de suposta lucidez para um estado de suposta loucura, onde esta não me faz sofrer, nem desejar morrer, nem querer ser normal, nem coisa alguma. O meu olhar mudou, vejo tudo de outra maneira, vejo para dentro; ouço diferentemente e não é o eco do pensamento, não, são as vozes que me tocam no corpo todo e não só nos ouvidos, ouço com a pele; o meu corpo desafia-me a reconhecê-lo de outra forma: a dor e o prazer de outra forma. Só os outros não entram nesta aventura. Tantas coisas novas nesta mulher em mudança. Não me digam para tomar medicamentos que m’as levem, não os tomarei.

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